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Desembargadores

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Por Roberto DaMatta
Atualização:

Sinto muita vergonha (e dor) quando testemunho a prisão de membros do Poder Judiciário. A mais triste notícia dessas semanas fala precisamente da carceragem de desembargadores e altos funcionários do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo, sob suspeita do crime de venda de sentença. Encabeça a lista - Deus do céu! - o presidente do Tribunal de Justiça local! O leque das acusações é estarrecedor. Justamente no Dia do Combate a Corrupção. A palavra "desembargador" está dentro de mim. O pai de meu pai, Raul Augusto da Matta, era desembargador. E foi uma perfeita encarnação daqueles que desembargam, dos que, indo além do julgamento, julgam a súplica e a sentença. Dele retive uma memória de distância e formalismo. Mesmo de paletó de pijama e sentado numa cadeira de balanço que era só sua, vovô Raul era o juiz dos juízes. A vergonhosa notícia do Espírito Santo remete à sua figura alta e bonita, enfatiotada num terno de casimira preta, os cabelos brancos e um olhar tristonho no rosto comprido e bem talhado. O folclore da família contava o imenso baque sofrido por esse avô, quando perdeu tio Roberval de uma herpes fulminante. Justamente esse filho médico, jovem, bem-sucedido e muito ligado aos pais. Aquele filho que rompe com as coerções da filiação e não teme chegar perto dos pais como amigo e companheiro. Falava-se que, em sua imensa dor, Raul fantasiou a solução egípcia. Colocar o morto num caixão de vidro, estilo Branca de Neve, para poder tê-lo sempre ao seu lado. Quem sabe se os olhos tristes de vovô não refletiam o desembargador que fora capaz de desembargar todas as dores, menos a sua? Tendo eu próprio perdido um filho na força da idade e em circunstâncias igualmente dramáticas, quase sempre me surpreendo a pensar em como gostaria de conversar com vovô Raul de pai para pai, de avô para avô, de homem para homem - sócios patrimoniais que somos desse horrível clube daqueles que levaram para a sepultura um filho querido. E que encerraram esse filho dentro de um coração que não cessa de sangrar. Vejam o contaste. Vi a fotos dos juízes capixabas presos, e vejo meu avô cercado dos meus pais e tios, naquela varanda da Rua Nilo Peçanha, 31; no bairro do Ingá, na minha sempre amada Niterói, cortando o cabelo; lendo o jornal; dando sempre uma opinião ponderada de homem marcado pela consciência do sentenciar zeloso; e dizendo para minha avó Emerentina que era "um eterno apaixonado". Eterno apaixonado e honrado chefe de família, cuja presença física em conflitos quando era chefe de Polícia em Manaus fazia debandar baderneiros pela altivez e coragem com que os enfrentava. Para além disso, foi um juiz honesto, como provam os livros-caixa - presenteados pelo meu queridíssimo tio Mario, seu filho caçula - nos quais religiosamente anotava suas despesas e receitas. Meu pai também usava essa prática e escriturava os ganhos e os gastos reveladores do desequilíbrio para menos que é a marca desta tão desdenhada (quanto honesta) classe média brasileira. Ali, o leitor bate de frente com os gastos, as dívidas, os empréstimos tomados aos bancos e o "ordenado" sempre menor do que os dinheiros dados à filha Amália, aos filhos Mario e Silvio, à sua mulher Emerentina que, como minha mãe, recebia uma "mesada" de fazer corar de indignação feminista minha mulher, filha e netas. Ali está prova de que Raul jamais desembargou-se de sua honestidade. Ao morrer, sequer deixou uma casa... Um dia, esse velho Raul recebeu a visita de sua nora Celeste. Ela trazia das Laranjeiras, onde morava, o amor permanente pelo marido morto, Roberval, cuja fotografia guardava no seu livro de orações, mesmo depois de um segundo e feliz casamento; e o filho Raulzinho, nosso companheiro de brinquedos, estripulias, festas e praia. Eu tenho a mais viva lembrança dessas visitas. Eles não precisavam falar de um Roberval morto, porque ali estava ele majestosamente ressuscitado pela memória positiva e aberta da saudade, muito mais presente do que todos os indivíduos que formavam aquela corrente de vida, prazer e dor chamada de família brasileira. Vovô e vovó invariavelmente davam à nora tudo o que os ritos de hospitalidade brasileiros demandam: o café açucarado, o guaraná gelado, o sanduíche de fiambre e a cadeira de vime imaculadamente limpa ao lado de vovô Raul. Ao ver a nora chegar, o desembargador tentou levantar-se para cumprimentá-la, mas não conseguiu. O derrame cerebral o impedia de realizar o gesto denotativo de civilidade e respeito. Falaram que Raul passou a tarde contrariado com a doença que inibiu o gesto de consideração para com quem tanto amava. O mesmo sucedeu com o grande filósofo alemão Emanuel Kant. Pouco antes de morrer, ao realizar um enorme esforço para permanecer em pé em consideração a seu médico, exclamou: "O senso de humanidade ainda não me abandonou." Dizem que seus amigos foram às lágrimas. No Brasil de hoje, eu choro de indignação e repulsa quando vejo desembargadores embargarem a lei, a vergonha e a ética e, com elas, a nossa humanidade.

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