Como talvez saibam os abnegados que me lêem há muitos anos, sempre fui meio chegado a uma teoria conspiratorial e mantenho a convicta atitude de que uma boa paranóia tem o seu lugar. E, não é para me gabar, não, mas creio que, ao longo de minha vida, os acontecimentos vêm demonstrando a sabedoria de tanto uma coisa quanto a outra, para não falar que elas já são, por natureza, parentas próximas e muito amigas uma da outra. O chato é que a maior parte dos conspiratoriais não pertence à ala moderada, como eu. Pelo contrário, acho que o radicalismo prevalece, o que prejudica um pouco as nossas causas, como quando um deles procura convencer os interlocutores de que a onda de frio que ora nos assola está sendo promovida pelos laboratórios que vendem remédios contra os sintomas da gripe. Esse tipo de coisa tende a causar um certo ceticismo e a ala moderada, que é criteriosa quanto às conspirações que enxerga, encontra dificuldades para ser levada a sério. Isso me acontece há anos, quando falo na Amazônia. Cheguei a traçar, em alguns textos remotos, quase exatamente o que está acontecendo e o que deve acontecer no futuro naquela área hoje tumultuada. Mas até hoje há quem desmoralize isso como outra desprezível teoria conspiratorial, assim como o fato de eu continuar a pensar do mesmo jeito e a crer que ou as coisas mudam muito (não vão mudar) ou a integridade territorial e a soberania brasileiras caminham celeremente para a Cucuia, assediadas por todos os lados, inclusive internamente. Mas esqueçamos a Amazônia (esqueçamos mesmo) e vamos ver esse negócio, que já pode ser grafado em iniciais maiúsculas, com a virtual institucionalização da Crise Internacional de Alimentos (não, não acho que as iniciais em português queiram dizer nada - posso ser conspiratorial, mas não sou maluco). Saber que se passa fome escandalosamente num planeta que poderia alimentar todo mundo muito bem, isso já se sabia há muito tempo. Mas por que, de repente, os jornais fazem manchetes sobre a Crise Internacional de Alimentos? Os locutores dos noticiários falam sobre o assunto como quem fala sobre algo que há muito tempo faz parte do dia-a-dia? Alguma comissão por aí se reuniu, para criar o assunto do momento? Alguma autoridade supranacional declarou a súbita existência de algo que apenas não tinha sido batizado ainda, ganhando novo foco e gerando uma série infindável de acontecimentos de alguma forma correlatos? Convém, portanto, fazer a pergunta clássica, que é fundamental para os conspiratorialistas (achei melhor mudar a nome, para que não pensem que somos cúmplices disfarçados das conspirações que enxergamos ou denunciamos) e é chique, porque era lugar-comum em latim: cui prodest? A quem aproveita? Por que essa súbita preocupação, da parte de gente que virava a página da revista que estampasse uma criança morrendo de inanição? Por que agora só se fala nisso? O conspiratorialismo falou primeiro, agora fala todo mundo: interessa, por exemplo, a quem vai ter prejuízos com a produção brasileira de biocombustível, especialmente etanol (o presidente, aliás, falou bem sobre o assunto - viram como é tão melhor ele ler o que escreveram para ele, em vez de improvisar?). Interessa também a quem deseja que os alimentos continuem escassos e cada vez mais caros. Interessa, enfim, a todo um monstruoso aglomerado de interesses econômicos nem sempre de todo convergentes - e o que menos interessa a eles é quem está passando fome ou não. É por isso que, hoje à noite, em algum noticiário, algum apresentador, ou vários, vão se referir à Crise Internacional de Alimentos como se fosse um rótulo já conhecido há muito tempo, quando, na verdade, está saindo do forno agora, novinho e para consumo imediato da massa e de seus incontáveis otários, inclusive nós. Pode crer que já estão enfiando lorotas pelos nossos olhos e ouvidos adentro. Até porque, se não fossem subsídios à agricultura no famoso Primeiro Mundo, subida de preços do petróleo e muitas outras circunstâncias, o mundo teria perfeita capacidade de produzir alimentos em muito mais quantidade e só não o faz pela Lógica do Mercado e outros deuses subsidiários de Mamon que conduzem a vida na Terra. Se, por algum acaso louco, os alimentos estivesse baixando de preço e aumentando em oferta, "eles", os conspiradores, seriam maleáveis e cínicos o suficiente para declarar uma Crise Mundial de Excesso de Alimentos, com a conseqüente e inadmissível reação da Lógica do Mercado, que não suportaria os vendedores de alimentos, principalmente os processados, ganhando menos do que precisariam. Pergunte sempre cui prodest que você acha a raiz de qualquer decisão. Mas é claro que nem mesmo os conspiratorialistas mais exaltados têm resposta para tudo. No Brasil, por exemplo, uma mixórdia entontecedora invade qualquer leitor de jornal, ou às vezes um mero transeunte, entre falcatruas de todos os tipos, enganações, impunidade, insegurança, falta de educação, imposto escorchantes - e vindo mais -, gastos públicos obscenos, falta de saúde, iniqüidades de qualquer espécie imaginável, ladroagem desenfreada, parlamentares suspeitos a dar com o pau, praticamente todos os telefones grampeados, um presidente cuja única ideologia, ou ideal, é continuar no poder de qualquer jeito. Não, não há conspiração que possa ter gerado esse estado de coisas, a não ser que um dos muitos descarados que entre nós abunda queira acusar o Criador de formação de quadrilha para nos prejudicar. Isso não, é claro, mas de vez em quando eu acho que isto aqui é uma espécie de carma coletivo - que diabo nós andamos aprontando em outras encarnações? ''Dizem que onda de frio é promovida por laboratórios que vendem remédios contra a gripe'' ''A integridade territorial e soberania brasileiras caminham celeremente para a Cucuia''
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.