Entre erros, equívocos e omissões

Definição empregada na obra esbarra na fragilidade de teses que a justificam

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Por Teixeira Coelho
Atualização:

Certos livros levam o leitor a fazer uma pergunta cruel: por que foram escritos? Este é um deles. A pergunta nem sempre tem a resposta óbvia que parece sugerir; neste caso, tem. Peter Gay nasceu em Berlim em 1923, numa família judaica; em 1939 saiu da Alemanha, e chegou aos EUA em 1941, onde mudou seu sobrenome Frohlich para o equivalente inglês "gay", alegre. Historiador das ideias, recebeu prêmios e reconhecimento intelectual em 1968 com um livro sobre a cultura de Weimar. Com o tempo, passou a interessar-se por Freud e a psicanálise, praticando o que alguns chamam de psicohistória. Seu nome não convoca opiniões unânimes nos EUA, onde é visto como quem quer se apresentar como "dono de Freud" além de autor de quase um livro por ano sobre temas tão distintos como o socialismo democrático, Voltaire, Freud, o ódio, Mozart e Schnitzler. Essa não unanimidade pode ter seu lado positivo. Mas, muitos acadêmicos americanos, defensores de um conhecimento na vertical, apontam em vários de seus livros uma quantidade anormal de ideias rasas e feitas. É um pouco o que acontece neste caso. Dando como período de vida para o Modernismo o arco que vai de 1840 a 1960, Peter Gay discorre, em quase 600 páginas, sobre a vida moderna, os artistas de vanguarda, a poesia e a prosa, a música e a dança, arquitetura e design, teatro e cinema, os bárbaros e os excêntricos e Frank Gehry. É muita coisa para 600 páginas e grande demais o risco de deixar insatisfeitos a todos e cada um. Ele estava consciente do risco e mesmo assim o assumiu. Peter Gay não aceita que existam distintos modernismos. Prefere dizer que o Modernismo é um só e que corresponde a uma "única época histórica", aquela da consolidação da cultura ocidental. E busca explicá-lo por meio de duas outras teses: o fascínio pela heresia, que leva ao confronto com as sensibilidades convencionais (o velho épater le bourgeois); e o princípio do "exame cerrado de si mesmo", ou questiona-te a ti mesmo (mais do que o conhece-te a ti mesmo) ou, ainda, como difundido por Anthony Giddens (que ele não cita), a reflexividade - que deu, exatamente, a modernidade reflexiva. Ao final do livro, numa nota de rodapé em que procura refutar a T.J.Clark, aparece sua quarta tese, implícita desde o começo: o modernismo não acabou. Essas quatro teses, variadamente combinadas, devem poder explicar tudo que aconteceu no período: um poema de Rimbaud, uma composição de Satie, uma peça de Beckett, um quadro ("qualquer quadro", ele diz) de Picasso e Freud "com sua barba bem aparada". Das quatro, a mais débil é a primeira. Velha, simplista e exagerada demais (os artistas podem exagerar uma ideia, dizia Gide; os historiadores das ideias deveriam contê-las). Dizer que os artistas e intelectuais do período eram contra o burguês e procuravam chocá-lo como modo de afirmar-se cultural e socialmente ("o fascínio da heresia") é dizer uma verdade surrada que não dá conta da realidade. E que por vezes é meia verdade, dadas as boas relações mercantis (pelo menos, monetárias) entre artistas e intelectuais (como o próprio Freud) e sua clientela de fornidas carteiras que sempre se abriram com abundância ao toque correto do contestador de vanguarda. Os artistas e intelectuais modernos foram em sua maioria, isso sim, contra a modernidade e quase tudo que ela continha e representava: as velhas ideias, o capitalismo, a arte anterior, a política, a organização social, o bom-mocismo, o materialismo, a própria vida urbana (do flâneur, das passagens e galerias de Paris) que no entanto ao mesmo tempo tanta fascinação sobre eles exerceu. Foram contra tudo, não só contra o burguês. A questão é, apenas, saber quem foi o que e quando, quem foi contra quem ou o que, quando. O surrealismo foi contra o capitalismo mas depois uma parte dele virou contra o comunismo. Baudelaire foi contra o burguês mas depois foi a favor do modo de vida burguês. Colocar tudo no mesmo saco - e no caso de Gay é tudo mesmo - é um problema. Para fazer-lhe justiça, ao longo do livro ele faz correções a essa máxima sem no entanto reconhecer explicitamente que os modernos foram contra a modernidade, a não ser talvez numa breve passagem à página 384. Admite de modo expresso, apenas, o que é um pouco diferente, que algum modernos foram contra os modernos, como T.S.Eliot. Mas por que não adotar desde o início uma outra perspectiva e falar exatamente do que ele nega: dos modernismos, que são vários e nunca um só, formando não bem uma época mas um conjunto de épocas paralelas que dificilmente se comunicaram? Talvez porque, adepto do Iluminismo, Gay pense sempre por totalidades totalizantes. Ele diz que reconhece a diversidade na unidade - mas reafirma a unidade sobre a diversidade, quando deveria ser o contrário. Ao lado disso, as impropriedades se acumulam. Dizer que Robbe-Grillet é um moderno é estranho e impróprio. Estranho porque páginas antes Gay afirma que o romance moderno se tornou o romance da consciência, como manifestação do principio da reflexividade. Impróprio porque, se há alguma coisa que Robbe-Grillet não faz é exame de consciência, psicologismo, psicanálise... O nouveau roman era exatamente contra isso, como ficou claro (ou obscuro?) em Ano Passado em Marienbad, de Resnais, com roteiro de Robbe-Grillet. E Beckett não cabe na mesma gaveta de Proust. E não se pode mencionar em meia linha a Godard e Truffaut e não explicar se são modernos ou...pós-modernos, expressão que aparece talvez uma única vez no livro. Os motivos de insatisfação crescem: da América Latina, menciona García Márquez, que não é nem a ponta do iceberg, e nada diz de Borges ou Cortázar. Brasília, Niemeyer e Lúcio Costa não existem. Talvez porque ache que a America Latina nunca foi moderna. É uma tese. Talvez porque a América Latina, como classificava Samuel Huntington, não faça parte do ocidente - e Gay é um historiador da cultura ocidental... Esse tipo de omissão e ignorância cansa. Não por nacionalismo: só porque Borges foi muito maior que Márquez e inúmeros outros americanos e europeus que ele cita. Em suma, a tese da heresia é cobertor curto, a tese da reflexividade ele não sabe o que é (ou então nunca leu de fato Robbe-Grillet) e a ideia de que o modernismo continua é uma furada. O fecho do livro é sintomático. Ali ele fala de Frank Gehry e do Guggenheim-Bilbao. E tudo que encontra para dizer do arquiteto é que é anticonvencional e expressionista, muito pouco para quem é, abertamente, um dos grandes pós-modernos. E volta a pergunta: para que este livro, espécie de Reader?s Digest do modernismo? Nem para quem se inicia, nem para quem é iniciado. Acima de tudo, não para o leitor do século 21. Sempre se tira alguma coisa de um livro mas, desse, pouco. Livros devem ser como no jogo do bridge: se quem propõe um jogo não o faz, perde. Há ausências estridentes (o jazz), erros (quem mostra bichos em banho de formol não é um grupo de artistas, mas um só, Damien Hirst) e demasiada generalização. Pessoalmente, mesmo sem concordar sempre com ele, prefiro Hobsbawn: mais sintético e inspirado. Teixeira Coelho é professor da Escola de Comunicação e Artes da USP e autor, entre outros, de Moderno Pós Moderno (Iluminuras)

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