Podia ser uma oficina de costura qualquer. Estamos no Bom Retiro, um tradicional polo de confeccionistas em São Paulo, entre rolos de tecidos, mesas de corte, máquinas de costura e alfaiates. Só que dentro da Pinacoteca, na Alfaiataria da artista Laura Lima, que ocupa o Octógono até o começo de outubro. “São os alfaiates construindo roupas a partir dos meus esquetes com essa inteligência de engenharia da costura que a alfaiataria tem. É complexo e fascinante”, explica a autora.
Nesse ateliê peculiar, as roupas são telas criadas a partir de retratos nada figurativos desenhados por Laura e vestem molduras de dimensões variadas (a diversidade, afinal, é tendência). Tem ovais, quadradas, assimétricas… São os corpos dessas pinturas-costuras, representações de Lúcifer Maria, Ângela, Hilda e Severino, uns conhecidos, outros criações da artista.
Nos 30 retratos que devem ser produzidos ao longo da mostra, poucos materiais e técnicas serão repetidos. Há recortes e geometrias, curvaturas e abas, relevos em tweed e tecidos que transbordam das molduras. “É como se fosse um ateliê. Cada peça é uma obra de arte muito bem elaborada, única e sob medida”, fala o estilista Leonardo Carrijo, que atua como coordenador da exposição - ou um assistente da diretora de criação, num paralelo com o que seria numa marca de moda.
Um dos primeiros retratos finalizados é Lúcia, em que foram empregados técnicas de recortes, com detalhes geométricos em tecidos de diferentes cores e texturas, entre eles lã, tweed e zibeline, além de costuras feitas com máquina e à mão, especialmente para os acabamentos, que exigem uma finalização mais delicada. “Acho legal esse resgate da alfaiataria numa época em que a industrialização na moda é muito forte”, diz Antonio Borges, um jovem estilista especializado em camisaria sob medida que integra o time de artesãos de Alfaiataria.
Os materiais que devem ser usados nos diferentes retratos são sugeridos pela artista e uma das curiosidades é que diferentemente da pintura sobre tela, essas obras têm um verso a ser apreciado. Conforme ficarem prontas, serão expostas em trainéis, um suporte usado para armazenamento de acervos.
Alfaiataria reúne elementos recorrentes no trabalho de Laura Lima, considerada uma das mais importantes artistas contemporâneas do País. Uma delas é o elemento vivo da obra (no caso, os alfaiates) e a colaboração com especialistas de diferentes áreas (numa obra em cartaz na Fondazione Prada, em Milão, ela trabalha com astrônomos). Outra é o uso de suporte têxtil e vestível, mas de uma forma diferente da que Lygia Clark fazia. “Meu foco é sobre a ornamentação”, afirma a artista, que já montou uma exposição numa galeria de arte com roupas expostas em araras (Costumes Loja, 2003, na Casa Triângulo, em São Paulo) e enfeitou galinhas vivas com plumas de carnaval (Galinhas de Gala e Galinheiro de Gala, 2007, no MAC de Fortaleza).
Exibida em Mastrique, na Holanda, em 2014, Alfaiataria evocava a introdução pelos irmãos Van Eyck dos retratos feitos em canvas, um tecido (madeira e afrescos eram o suporte tradicional até então). Na Pina, essa relação ganha uma nova camada sugerida pela mistura de culturas de seu entorno (judaica, coreana, colombiana), sem falar da arte e da moda.