O cineasta francês Michel Gondry, aos 45 anos, não é do tipo que se deslumbre com qualquer coisa. Ganhador do Oscar de melhor roteiro por Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças (2004), que também dirigiu, nunca pretendeu ser o garoto de ouro de Hollywood, até mesmo porque, assumidamente socialista, não está disposto a passar o resto de seus dias adulando produtores. Gondry está em São Paulo para a pré-estréia de seu filme Rebobine, por Favor, amanhã, no Museu da Imagem e do Som (MIS), onde será aberta no dia 2 uma exposição com 13 cenários criados pelo diretor. Eles vão servir para realização de um workshop que repete o mesmo protocolo do projeto original concebido por Gondry, em março deste ano, numa galeria de Nova York, onde foi criado um miniestúdio para que qualquer pessoa pudesse entrar com amigos e rodar um filme nesses cenários. Em um mês, a Deitch Projects atraiu mais de mil pessoas, que realizaram 122 filmes de 10 a 15 minutos de duração, inspirados pela experiência do filme Rebobine, por Favor. O filme é uma paródia do sistema de produção hollywoodiano. Nele, uma dupla de amigos resolve refazer com precários recursos grandes sucessos do cinema americano, como Robocop, Os Caça-Fantasmas e Conduzindo Miss Daisy, depois que um deles, Jerry (Jack Black), com o corpo magnetizado, apaga acidentalmente as fitas de VHS da locadora de vídeos de Mike (Moss Def). Detalhe: a locadora, pouco freqüentada e localizada numa comunidade pobre, vira a atração da vizinhança, transformando os dois amigos em astros. Moral da história: o que era privilégio dos produtores de Hollywood chega às massas graças a um gesto criativo gerado pela necessidade. Em entrevista ao Estado, por telefone, Gondry diz que seu pai, programador de computadores, foi o primeiro a lhe dar um pontapé em direção ao socialismo. "Ele me chamou de comunista quando tentei mobilizar a comunidade de um bairro de imigrantes em Paris para salvar um cinema tradicional, o Louxor, ameaçado de demolição." Bem, esse "comunista" transformou-se no mais prestigiado diretor de videoclipes dos anos 1990 e comerciais premiados da Nike e Smirnoff. Contradição? "É preciso buscar dinheiro para financiar filmes experimentais", justifica. No livro em que define o protocolo de seu workshop baseado em Rebobine, por Favor, você diz que tinha um bocado de idéias ingênuas para salvar o mundo, ou, pelo menos, o cinema Louxor, fechado nos anos 1970. Essas idéias deixaram de ser utópicas e tomaram forma no projeto comunitário que envolveu toda a cidade de Passaic, em New Jersey, cujos habitantes trabalharam de graça em seu filme. Como você mesmo diz, descobriu um meio capaz de adaptar sua utopia, o cinema. Mas, em termos ideológicos, como você reagiu ao fim do comunismo? Acho que o mundo se tornou mais conservador, reacionário. Descobri ainda que os países capitalistas chegaram à conclusão que o capitalismo não tem para onde ir. De qualquer modo, não esperava, quando jovem, que os países comunistas se transformassem em fascistas e foi mais ou menos isso o que aconteceu. Ambos, comunistas e capitalistas, se curvaram exclusivamente aos interesses econômicos. É até engraçado quando aparece alguém como Obama assumindo um discurso socialista. Você mesmo teve problemas para envolver toda a comunidade de Passaic, integrada por 62% de hispânicos e 14% de afro-americanos, que viam com desconfiança o projeto, acionando até mesmo sindicatos para arrancar algum dinheiro do seu bolso. Foi doloroso para você cair na real? Bem, tive realmente problemas sérios com o sindicato dos atores, mas algumas seqüências exigiam amadores, como aquela da dança no episódio da vida de Fats Waller. Queria espontaneidade, não um coreógrafo profissional, mas, nos EUA, você não tem autonomia para fazer as coisas de seu jeito. Agora, a maioria das pessoas em Passaic colaborou bastante com o projeto. Esse revival da utopia de Fats Waller como modelo dos personagens de Rebobine, por Favor é de fato, emocionante, em especial se lembramos que o pianista tocava de graça em festas para arrecadar o dinheiro do exorbitante aluguel cobrado pelos brancos dos negros que moravam nas habitações do Harlem nos anos 1920 e 1930. Fats Waller é seu guia espiritual? Diria que sim, que ele é um guia espiritual não só meu, mas de todos os que desejam a independência artística. É um paradoxo ter de enfrentar a reação de um sindicato para prestar uma homenagem a Fats Waller, que ensinou o Harlem a combater a opressão, criando uma forma popular de arte e cultura. Sindicatos querem apenas conservar privilégios - e eu sou contra eles. Fiz um filme socialista. A idéia era engajar toda uma comunidade em torno de uma idéia, a de fazer os próprios filmes e exibi-los para que cada integrante dessa comunidade pudesse nele se reconhecer e descobrir seu potencial, sua criatividade. Mas quando você começou o workshop de Rebobine, por Favor, a escolha do local recaiu sobre uma galeria de arte de Nova York, onde garotos mimados entravam com câmeras sofisticadas e equipamentos de som e luz de última geração, o que parece contrariar a idéia do projeto, de engajar os deserdados. Você acha que as pessoas são atraídas para o projeto por causa do nome Gondry, por você ter feito todos aqueles clipes com Björk, Beck, Radiohead, Massive Attack e Rolling Stones? É difícil dizer. Alguns foram atraídos por meu nome, outros pela experiência. É justamente o que justifica a existência de um protocolo destinado às pessoas que desejem participar do workshop, pois não pretendo acirrar nenhum tipo de competição ou alimentar ambições artísticas. A escolha da galeria foi idéia de Jeffrey Deich e creio que não teria sido possível realizar o projeto sem sua ajuda. O sistema que desenvolvi, de interagir com cenários já existentes, descarta essa pretensão de querer agir como diretor ou ensinar as pessoas como se tornar um cineasta, especialmente porque há críticos que acham que eu não sou lá tão bom assim. Esse é um dos motivos pelo qual uma das regras é não vir com idéias preconcebidas para o workshop. Essa espécie de clube formado por participantes do projeto Rebobine, por favor permite que todos criem o próprio filme seguindo o protocolo, mas isso não é um pouco Dogma, isto é, não é uma camisa-de-força como a inventada por Lars von Trier? A propósito, já que a Nouvelle Vague francesa está completando meio século, o que você acha de movimentos como esses? Decididamente, não pretendo criar nenhum movimento como o Dogma. Não gosto da idéia, que considero francamente antidemocrática. Elaborei um protocolo para um grupo fazer filmes, não criar uma religião. Quando à Nouvelle Vague, penso na minha geração e creio que fui pouco influenciado por ela. Não tenho boas coisas a dizer sobre o movimento ou os cineastas que o forjaram, inventando regras por meio de um revista de cinema. Truffaut, por exemplo, se tornou acadêmico com o passar dos anos, cada vez menos experimental, o oposto da Nouvelle Vague, o que explica minha aversão a movimentos. Uma coisa que me chamou a atenção lendo o protocolo é que você insiste em recomendar ao participante que evite a perfeição, logo você, que é um perfeccionista, cuidando pessoalmente de cada efeito especial, de cada fotograma. Basta ver seus clipes ou o longa Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças. Não é uma contradição? Há uma diferença entre perseguir a perfeição e sucumbir ao terror da imperfeição. Todos querem ter boas críticas, mas a perfeição é inimiga. É monstruosa, desumana, no sentido de que o novo nunca é perfeito, é inclassificável. Errar pode ser mais engraçado, como prova Rebobine, por Favor. Pessoalmente, jamais estabeleço metas que não possa alcançar. Como é para um diretor criativo trabalhar dentro do sistema de produção hollywoodiano? Às vezes temos de fazer concessões para arranjar dinheiro, mas tento buscar a grana nos comerciais. É uma contradição, porque não gosto da sociedade capitalista. Por outro lado, se não fizer isso, vou ter de me submeter à tirania do produtor. E eu quero contar minhas histórias do meu jeito. Serviço Rebobine, por Favor. MIS. Av. Europa, 158, 2117-4777. 12/21 h; dom., 11/20 h (fecha 2.ª). Grátis. Até 11/1. Hoje, abertura para convidados; terça, para público