Apesar de a história registrar centenas de guerras civis com características semelhantes, elas não foram acompanhadas por estudos comparativos mais abrangentes que identificassem semelhanças e padrões. Muitos livros foram escritos sobre guerras civis na Espanha, Grécia, Nigéria e até mesmo sobre aquela que é a campeã de toda a literatura sobre o tema: a Guerra Civil americana. Como todas as guerras civis resultaram de conflitos internos aos países – além de enormes dificuldades de acesso às fontes e de arbitrar pelejas de testemunhos apaixonados e parciais –, os intérpretes também foram marcados pelas paixões nacionais. Entre os analistas parece que cada um achava que a guerra civil no seu país era única e descrevesse uma guerra civil para chamar de sua.
Nas duas últimas décadas, com a aplicação de programas digitais e o processamento de grande número de dados, a interpretação das guerras civis ganhou novas abordagens. Como as Guerras Civis Começam; e como Impedi-las, da professora de Relações Internacionais da Universidade da Califórnia, Barbara Walter, é um ótimo exemplo dessas novas abordagens, pois consegue juntar o melhor tanto dos inúmeros bancos de dados sobre o tema – apontando padrões e semelhanças – com o testemunho de uma autêntica repórter – já que ela esteve presente em vários conflitos civis, convivendo com pessoas comuns e narrando histórias de tanta gente sofrida em Saravejo, Kosovo, Líbia, Síria, Iraque e outros lugares. Noor, em Bagdá, Berina e Daris Kovac, em Saravejo, Anton Melnik, na Ucrânia: pessoas comuns, que confessaram que só viram a guerra chegar quando era tarde demais. O livro já vale por juntar tanto a utilização de inúmeros dados com a sondagem sensível da vivência das pessoas comuns.
Após a 2ª. Guerra Mundial, a grande maioria das guerras civis do século 20 surgiram de polarizações ideológicas ou questões relacionadas a conflitos entre classes sociais. Já a partir de meados do século passado os padrões dos conflitos se alteram radicalmente: mais do que entre grupos políticos, eles ocorreram entre diferentes grupos étnicos e religiosos, cada qual tentando dominar os demais ou, em casos extremos, exterminá-los. Desde os anos finais da Guerra Fria, 75% de todas as guerras civis foram travadas entre facções étnicas. Como exemplos, basta listarmos as guerras que ganharam as manchetes nas últimas décadas: Síria, Iraque, Iêmen, Afeganistão, Ucrânia, Sudão, Etiópia, Ruanda, Myanmar, Líbano e Sri Lanka. Todas elas envolveram conflitos de grupos divididos por linhas étnicas e religiosas – ou, com frequência, pelas duas coisas.
Embora pareça óbvio, um dos melhores indicadores da probabilidade de um país viver uma guerra civil é o fato de estar se aproximando ou se afastando da democracia, já que as nações nunca passaram da autocracia absoluta para a democracia plena sem uma complicada transição. Entre muitos casos analisados pela autora, destaca-se o exemplo da Hungria: o país tornou-se uma democracia plena em 1990, até que o primeiro-ministro Viktor Orbán, de forma lenta e metódica, empurrasse o país de volta para a ditadura. É nesta espécie de limbo que nascem as guerras civis: é uma zona intermediária, designada pela autora como “anocracias”, pois não são nem autocracias absolutas nem democracias plenas, mas alguma coisa que se situa num espaço intermediário.
As guerras civis aconteciam não necessariamente por conflitos étnicos e religiosos, mas somente quanto tais conflitos ganharam uma forma aguda de polarização política
Entretanto, classificar países dentro deste quadro é trabalho difícil. O Polity Project, do Center for Systemic Peace, apresenta um colossal banco de dados mais confiáveis, com vários índices, compilando centenas de milhares de sondagens de vários países, incluindo pobreza, diversidade étnica, tamanho da população, desigualdade e corrupção. Mas com base nas suas próprias reportagens de anos anteriores e visitas presenciais a cenários de conflitos como o Iraque e Laos, a autora colocou em dúvida tal interpretação calcada apenas em índices quantitativos: as guerras civis aconteciam não necessariamente por conflitos étnicos e religiosos, mas somente quanto tais conflitos ganharam uma forma aguda de polarização política chamada por ela de “faccionalismo”. Quando os países se tornam “faccionalizados” os partidos políticos ganham forte base identitária e apostam em inflexibilidade, intransigência e violência.
A passagem de uma democracia para uma anocracia faccionalista nos últimos anos ganhou um grande aliado, talvez o maior acelerador das guerras civis: o advento da Internet e o uso generalizado das redes sociais, que propiciaram condições perfeitas para o faccionalismo e para a formação de milícias, tornando mais fácil para outsiders semearam a desconfiança e a divisão. O que deveria ser uma nova era de compartilhamento de informações e de ferramentas para a democracia, revelou-se uma caixa de Pandora, pois escancarou as portas para a disseminação de informações falsas (isto é, erradas) ou de desinformações (isto é, intencionalmente erradas), sem qualquer regulação. O que se vê atualmente é que a maioria das pessoas prefere o medo à calma, a falsidade à verdade, a indignação à empatia, pois são muito mais inclinadas a apreciarem posts inflamados do que posts não inflamados, o que incentiva a repassarem material provocativo, com conteúdos ofensivos ou raivosos, verdadeiros ou não, na expectativa de que viralizem. A esfera pública encontra-se cada vez mais corrompida: charlatães, partidários de conspirações, trolls, demagogos e agentes antidemocráticos que se encontravam alijados dos ambientes midiáticos começaram a se impor. As facções étnicas cresceram, as divisões sociais se aprofundaram, o ressentimento coletivo se incrementou, populistas truculentos foram eleitos e a violência cresceu. O ódio transformou-se num fato social explícito ou, ao menos, numa forma acelerada e viral de comunicação. Enfim, as redes sociais transformaram-se no acelerador perfeito para as guerras civis.
Entre as muitas análises detalhadas, a autora mostra que foi exatamente isso que aconteceu em Myanmar, onde extremistas, como o monge budista radical Ashin Wirathu, virou um ícone radical cult no Facebook, manipulou um público ansioso para ouvir seus discursos contra os quase 2 milhões de Rohingyas. E foi só muito tardiamente, em 2018, que o Facebook reconheceu que havia contribuído para a violência em Myanmar, depois de uma série de reportagens (da imprensa mais séria) ligando diretamente a plataforma ao genocídio de 2017. Mas isto apenas quando a morte de milhares de pessoas já havia acontecido.
Como consultora do Banco Mundial e da ONU, a autora não se furta de analisar ainda as duas grandes estratégias utilizadas pelas facções e milícias ao provocarem as guerras civis: a “guerra de atrito” e ameaça de falsas conspirações. A guerra de atrito inicia-se com uma série contínua de ataques contra pessoas e infraestruturas públicas: prédios federais, mercados, escolas, tribunais, sistemas de transporte e redes de eletricidade. O objetivo destes ataques domésticos é claro: infligir dor aos cidadãos até que eles implorem por uma trégua e exijam que o governo ceda às demandas dos terroristas.
O ataque da al-Qaeda nos Estados Unidos em 11 de setembro também foi parte de uma guerra de atrito pois ocorreu depois de uma série de ataques dispersos contra outros alvos americanos
O Hamas empregou essa estratégia durante anos, detonando bombas em ônibus em Jerusalém, Nablus ou lançando ataques suicidas em cafeterias de Telaviv. O ataque da al-Qaeda nos Estados Unidos em 11 de setembro também foi parte de uma guerra de atrito pois ocorreu depois de uma série de ataques dispersos contra outros alvos americanos. A outra estratégia é a disseminação de conspirações: para incitar as pessoas à ação; basta oferecer a elas um “outro” como alvo, um complô de bastidores para prejudicar o grupo a que elas pertencem, convencendo-as de que o “inimigo” está comandando o país. Os senhores de escravos do Sul, nos anos que antecederam a Guerra Civil, fizeram exatamente isso, ao descreverem os abolicionistas como ameaças existenciais ao seu estilo de vida.
Já os textos canônicos por trás das facções e milícias terroristas têm a profundidade de um dedo e a ignorância quase do tamanho de uma galáxia. Os nazistas tinham o Mein Kampf de Hitler; os membros da al-Qaeda contavam com um manifesto de trinta páginas de Osama bin Laden; os terroristas líbios recorriam ao Livro Verde de Gaddafi. Até mesmo os milicianos norte-americanos seguem os Diários de Turner – que o próprio FBI designa como “a Bíblia da direita racista”: páginas do livreto foram encontradas nos detritos da invasão do Capitólio em janeiro. Leitores não faltam e ofertas são enormes. Os Diários de Turner ocupavam a 36ª. posição entre os mais vendidos na Amazon em 2021 – e o mecanismo de recomendação de leitura ainda dizia “você pode gostar também de...” Mein Kampf, International Jew, White Power etc. Isso só mudou após o ataque ao Capitólio, quando a própria empresa removeu os livros do site.
A parte mais difícil já está anunciada no subtítulo do livro: Como impedir as Guerras Civis? Em História, quanto mais denso e profundo o diagnóstico, mais difícil o remédio. Todas as coisas boas tendem a andar juntas, diz a autora, mas três, de tão óbvias, podem ser claramente enunciadas: o “Estado de direito” (a aplicação igual e imparcial do processo legal); “voz e responsabilização” (o grau de participação dos cidadãos na escolha do seu governo, bem como as liberdades de expressão e associação e uma imprensa livre) e a “eficácia governamental” (a qualidade dos serviços públicos e a independência do serviço civil). Poucos países conseguiram juntar estes três pilares nas últimas décadas e o Canadá foi uma das exceções, ao proibir doações estrangeiras a campanhas eleitorais e exigir das plataformas como Google ou Facebook a criação de um registro de anúncios públicos digitais, para que os cidadãos pudessem ver quem estava tentando influenciar as eleições. Lembre-se que os canadenses receberam, em 2020, uma das notas mais altas no relatório da respeitada Freedom House. Reforçar os processos democráticos, incentivar a convivência multiétnica, colocar um freio nas redes sociais reduzindo o faccionalismo e a disseminação do ódio: estas são as apostas e as mensagens de Barbara Walter. Mas será que nossas sociedades serão capazes de ouvi-las?