A personagem que Lilia Cabral vive em Maria do Caritó é uma espécie de Cabíria rediviva. Como se a figura imortalizada por Giulietta Masina tivesse sido transportada ao sertão. Verdade seja dita que no longa de Federico Fellini quem colecionava decepções na sua busca por um verdadeiro amor era uma prostituta. Em chave oposta, na peça de Newton Moreno deparamo-nos com uma virgem quase beatificada. Descontadas essas diferenças, porém, são muitas as aproximações possíveis entre as duas. Ambas são ingênuas. Igualmente crédulas e sonhadoras. Incapazes de permitir que a sucessão de enganos abale a fé que devotam ao amor. "O espetáculo tem essa capacidade de inspirar esperança. Se fala o tempo inteiro da fé, da pureza, do amor. A Maria do Caritó, apesar de tudo, nunca deixa de acreditar. Não desiste de encontrar alguém", considera o diretor João Fonseca. Outro ponto de contato entre o filme de Fellini e a Caritó brasileira é a proximidade com o universo circense. Na obra protagonizada por Lilia Cabral é a chegada do circo que virá transformar o destino da personagem título e insuflar-lhe fôlego renovado em sua peregrinação amorosa. Para salvá-la de um parto difícil, o pai de Maria do Caritó prometeu-lhe como noiva a um desconhecido santo, São Djalminha. Prestes a completar 50 anos, a virtuosa heroína ainda não se conformou com sua sina. E persiste, sem esmorecer, em suas simpatias e promessas a Santo Antônio. Ao abrir sua lona na cidade, o circo oferece a Maria a chance de apaixonar-se pela primeira vez. De transformar-se em palhaça. Além de revelar-lhe aspectos de passado familiar que irão transformar sua vida. A aura circense não se encerra aí. Está na própria forma como a encenação foi concebida, explica o diretor. O palco toma o aspecto de um picadeiro. As cenas se sucedem como quadros de um espetáculo de variedades. Na mesma direção seguem ainda a trilha sonora e o treinamento corporal dos atores.Não é sempre que Lilia Cabral pode ser vista nos palcos. Nos últimos dez anos fez apenas duas peças: Unha e Carne (2003) e Divã (2005). Ambas com nítido pendor para o humor . "Muita gente acha que teatro é o lugar de mostrar quão sério você é e que se faz isso encenando um clássico. Não compartilho essa visão", argumenta. Ainda que não seja uma prioridade, a possibilidade de a atriz encarnar um personagem clássico permanece no horizonte. "Talvez seja o meu próximo espetáculo. Estou empurrando. Tenho que sentir necessidade," argumenta. "Teatro para mim sempre foi, de fato, um picadeiro", comenta. "Quando estou em cena quero saber que estou dominando tudo: o leão, o tigre, o elefante. Agora, se for um espetáculo pesado, vai ter só um lado disso. A vantagem da comédia é que ela tem todos os bichos para gente brincar."A dose de brincadeira é extra porque a obra foi ainda o pretexto para que Lilia se reencontrasse com antigos companheiros de teatro: Fernando Neves e Silvia Poggetti. Com os dois, que hoje atuam no coletivo paulistano Os Fofos Encenam, manteve nos anos 1980 uma trupe que era conhecida pela sugestiva alcunha de Companhia Dramática Piedade, Terror e Anarquia. "O mais divertido é que, com esse nome, fazíamos espetáculos infantis", lembra, entre risos. O caráter lúdico de Maria do Caritó, contudo, não alivia sua carga de dificuldade, considera a atriz. "É o espetáculo mais difícil que já fiz. Além de ser o mais desenhado, matemático, é, ao mesmo tempo, o mais humano. Ao fim, o público precisa estar completamente apaixonado por essa personagem." Sob a aparência de despretensiosa comédia romântica, a obra condensa uma série de críticas ao autoritarismo, à exploração econômica da religião, aos traços políticos de um Brasil arcaico que insistem em se manter tristemente atuais. "Newton Moreno consegue conciliar a comédia popular ao texto sofisticado", considera Fonseca. "O tempo todo você está sendo levado como se estivesse no circo. Sendo iludido e entretido. E, de repente, a história te libera para fazer leituras em outras camadas."