‘A Fernanda Torres deles’: como o gatinho de ‘Flow’ virou fenômeno na Letônia e entre os gateiros

Animação indicada ao Oscar está em cartaz nos cinemas brasileiros

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Por Laysa Zanetti
Atualização:

Cerca de 16 mil pessoas passaram pelo Museu Nacional de Arte da Letônia entre os dias 21 e 28 de janeiro deste ano apenas com um objetivo: ver de perto a estatueta do Globo de Ouro de Melhor Animação conquistada por Flow no último dia 6 de janeiro. Algumas dessas pessoas esperaram uma hora na fila para chegar perto do troféu, que ficou exposto, simbolicamente, entre duas estátuas de gatinhos. Para o diretor do filme, Gints Zilbalodis, não há dúvida. A febre de Flow está tomando conta do país.

'Flow', filme da Letônia indicado ao Oscar, vira paixão nacional Foto: Mares Filmes/Divulgação

A própria decisão de expor a estatueta entre as paredes de um museu importante já denota a empolgação nacional com o filme, mas não foi só isso. A prefeitura de Riga, capital da Letônia, colaborou com Zilbalodis para erguer uma estátua do gato preto sobre o letreiro da cidade, em frente ao tradicional Monumento da Liberdade, um dos cartões-postais do país. Recentemente, uma arte urbana homenageando o bichano também foi pintada nas paredes de uma construção em Riga, algo que o diretor compartilhou com orgulho em seu perfil no Instagram.

O entusiasmo letão com o protagonista de Flow – que não tem nome, mas já foi apelidado de “gatinho Flow” – conquistou as redes sociais e especialmente os brasileiros, que viram em toda a história um ponto de interseção com Ainda Estou Aqui. Afinal, assim como os letões torcem pelo filme e por seu gatinho preto protagonista, os brasileiros também torcem pelo longa de Walter Salles e por sua estrela Fernanda Torres.

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Baixo orçamento, altas expectativas

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Flow, já em cartaz nos cinemas brasileiros, é um verdadeiro azarão. Produzido com um orçamento modesto de apenas US$ 3,6 milhões de dólares – o de Divertida Mente 2, por exemplo, foi de US$ 200 milhões –, o filme foi inteiramente criado no Blender, um software de computação gráfica totalmente gratuito, e fez da falta de recursos seu maior trunfo. Zilbalodis trabalhou com uma equipe pequena que contou com cerca de 20 pessoas, venceu a limitação técnica com criatividade e, assim, fez história na Letônia.

A trama, criada por ele em parceria com Matiss Kaza, acompanha o gato, um animal solitário que tem seu lar destruído por uma grande inundação e precisa encontrar um novo refúgio. Sem saber para onde ir, ele se esconde em um barco que começa a ser habitado por diversas outras espécies, que precisam se entender apesar das diferenças. Cachorros, uma capivara e lêmures estão entre os habitantes da embarcação que vai se tornando mais heterogênea à medida que a história se desenrola. Ninguém nessa espécie de arca de Noé moderna tem fala. Mas todos têm muita personalidade.

A falta de falas, aliás, é outro ponto que diferencia Flow das demais animações mais tradicionais que, inclusive, concorrem com ele ao Oscar. Mas a ausência de diálogo não faz dele um filme silencioso, e o trabalho do engenheiro de som Gurwal Coïc-Gallas é o grande diferencial para isso.

Cão de 'Flow' é inspirado em animal de estimação do diretor Foto: Mares Filmes/Divulgação

A ideia do diretor era que o público enxergasse o mundo pelo olhar de seu nobre protagonista, o que significa que os sons deveriam ser contidos e reais na medida do possível. Diante da exigência e da necessidade de ser criativo, a solução encontrada por Coïc-Gallas foi simples. Levar um microfone para a sua casa e colocá-lo em frente a Muit, sua gatinha.

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A ideia demorou para dar certo, já que o felino levou dois meses para se familiarizar com o aparato tecnológico, mas deu ao engenheiro outras ideias. Os lêmures, as garças e os cães também são “dublados” por animais reais das mesmas espécies. Apenas a capivara precisou ser adaptada, mas Coïc-Gallas explicou o motivo.

“Passei um dia inteiro tentando gravar a capivara para nada”, contou em entrevista ao IndieWire. “Então Gints ouviu. Como ele é muito educado, não falou nada sobre o som da capivara, mas era terrível. Então tentamos encontrar outro som, e [o diretor] teve a ideia de usar camelos. O som de bebês-camelos funcionou.”

Se a mensagem otimista já não fosse o bastante, este detalhe realista foi outro que fez o filme conquistar um público relevante nas redes sociais: os gateiros. Acumulam-se no TikTok dezenas de vídeos de cães e gatos domésticos hipnotizados em frente à TV enquanto assistem ao filme e tentam interagir com os bichinhos animados na tela.

Essa estrutura de “faça você mesmo”, aliada ao teor cativante dos vídeos virais, deu a Flow o status de uma obra que nada contra a corrente, sobretudo por ter chegado tão forte às premiações americanas diante de uma realidade tão diferente daquela dos grandes estúdios.

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“O estúdio era relativamente pequeno, cabia tudo em uma sala”, contou Zilbalodis em entrevista ao site Blender.org. “No total, tínhamos entre 15 e 20 pessoas, mas normalmente havia apenas entre 3 e 5 pessoas trabalhando, já que equipes diferentes trabalhavam em pré e pós-produção.”

A sorte de Flow mudou em 2022, quando a belga Take Five e a francesa Sacrebleu Productions entraram como coprodutoras, aprimorando os trabalhos de som, animação de personagens e outros aspectos adicionais. “Expandir a equipe com diretores técnicos experientes, bem como animadores trabalhando em um processo bem estruturado, foi essencial para lidar com a complexidade exigida pelo filme”, conta o realizador. “Esta foi uma coprodução verdadeiramente internacional.”

A estreia elogiada do filme na mostra Um Certo Olhar no Festival de Cannes 2024 foi o ponto de partida para uma jornada estrelada. Flow acumula prêmios do Festival Annecy, European Film Awards, National Board of Review, Annie Awards e associações de críticos de Nova York, Los Angeles e Boston – além, é claro, da indicação ao Oscar. De lá para cá, tornou-se o filme mais visto da história da Letônia e ganhou uma página no site oficial de turismo do país. A empolgação é tanta que o governo letão deu um prêmio em dinheiro à equipe, semelhante ao que é dado a medalhistas olímpicos.

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O sucesso reverbera, e agora abre espaço para uma discussão mais profunda na Letônia. A Ministra da Cultura do país, Agnese Lāce, disse que é necessário repensar o investimento em obras audiovisuais.

“Temos muito orgulho do trabalho feito pela equipe de animação de Flow, mas junto às palavras de agradecimento, é importante receber agradecimento financeiro do governo por uma conquista internacional tão grande. Ao mesmo tempo, também estamos pensando em novas formas de apoiar a indústria cinematográfica.”

Para o diretor, o sucesso de um filme que começou sua trajetória de forma tão simples mostra que o público quer mais. “É louco e sem precedentes”, declarou ao podcast The Big Picture. “Isso mostra que há um apetite para diferentes tipos de filmes animados. Podemos ter estúdios menores assumindo riscos maiores e tentando coisas novas. Tenho certeza que veremos mais filmes assim, porque [nossa história] mostra que é possível fazer sucesso.”

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