Seu nome é Francisco Oliveira da Silva, mas ficou sendo só François da Silva. É o novo diretor da Quinzena dos Realizadores, talvez a mais prestigiada das mostras paralelas do Festival de Cannes. A Quinzena surgiu em 1969, após a interrupção do festival, no ano anterior, em função dos acontecimentos de Maio de 68, em Paris. Sob a influência dos diretores que haviam paralisado o festival de cinema mais importante do mundo - François Truffaut e Roman Polanski -, foi criada a Societé des Réalisateurs. A sociedade instituiu a Quinzena para devolver a Cannes o espírito do festival, que de alguma forma estaria se perdendo com a excessiva badalação da mostra competitiva. Silva é de origem portuguesa. Foi garoto para a França. Foi na escola primária que Francisco virou François e Oliveira foi esquecido. Como novo diretor da Quinzena, ele está em São Paulo para ver filmes - brasileiros, principalmente. Teve até uma reunião com novos diretores nacionais ontem à tarde, no bar do Hotel Crowne. Empossado há dez dias, Silva quer devolver à Quinzena um caráter que o próprio festival perdeu. Ele defende o cinema com um pé na realidade, defende as pesquisas de linguagem e política. Por isso mesmo, a Quinzena não é e nunca será competitiva. "Não queremos nos ocupar de Sharon Stone, da montée des marches, dos vestidos das estrelas", alfineta - a bela Sharon foi jurada este ano. A viagem ao Brasil tem esse objetivo. Silva quer ver filmes, discutir com novos diretores. Lembra que a diretora anterior, Marie Pierre Macia, foi demitida pela Societé des Réalisateurs porque ficou muito presa ao conceito da mostra principal. Ela transformou a Quinzena na vitrine do lixo da competição e é isso que Silva quer evitar. Ele inicia pelo Brasil, aonde já veio quatro vezes - as anteriores foram viagens de turismo -, um périplo pelo mundo. Faz um comentário pertinente. "O Brasil produz, digamos, 40 filmes por ano e eles não chegam aos festivais internacionais; Portugal produz dez e todos eles integram a programação dos maiores festivais." Por que isso ocorre? Por que o cinema português é melhor? Não, porque seus diretores têm mais contatos no universo dos festivais. É o que Silva está querendo fazer. Contatar pessoas, abrir uma janela para ser contatado por elas. Isso pode ser feito por e-mail. Cita o site www.quinzaine-réalisateurs.com, que possui um link para quem quiser se comunicar com ele. Admite que não conhece muito o cinema brasileiro atual. Conhece o da época do Cinema Novo, "mas hoje os filmes brasileiros não passam mais na França". Viu Durval Discos na mostra e não se empolgou muito. Acha que o filme de Anna Muylaert tem um problema no seu miolo. "Começa bem, toda a exposição dos personagens é muito criativa, mas a partir daí não se desenvolve; é um problema de roteiro", diz. Relata sua experiência pessoal, que o catapultou à direção da Quinzena dos Realizadores. Ele começou no cinema como bilheteiro, passou a projecionista. Foi para Marseille lá criou uma rede de salas de arte-e-ensaio, o que no Brasil se chamaria de cineclube. Conta que há uma rivalidade entre Paris e Marseille, que, na França, a capital concentra tudo e não há nada fora dela. Sua experiência em Marseille foi tão bem-sucedida que chamou a atenção do conselho diretor da Societé des Réalisateurs. Cita, em especial, o diretor Pascal Thomas, que está à frente da entidade. Chamado para substituir Marie Pierre Macia, ele assumiu há pouco mais de uma semana e já está no Brasil. Gostaria de ir também à Argentina, ao Chile, mas encerra em São Paulo mesmo esta viagem pelo País. Daqui segue (amanhã mesmo) para a Alemanha, que realiza o Festival de Cottbus. "Prefiro o ambiente dos festivais porque é um ponto de encontro de muita gente, de muitas tendências." Anuncia que já possui idéias que pretende implementar na Quinzena do ano que vem. Os filmes terão de ser todos inéditos. Aceita, eventualmente, que algum filme já possa ter sido exibido num festival no próprio país de origem, mas diz que, isso, só se for muito bom, verdadeiramente excepcional. Vai transformar essa questão de ineditismo num dogma. A Quinzena continuará exibindo entre 20 e 25 longas, mas Silva promete mais do que triplicar o número dos curtas da programação. "Atualmente, são seis; quero que sejam 20, no mínimo." Se conhece pouco do cinema brasileiro atual, ele expõe sua preferência em outras cinematografias. A entrevista coletiva de Aleksandr Sokúrov acaba de terminar quando Silva começa a conversar com a reportagem. Ele vê Sokúrov ao longe e manifesta sua admiração pelo autor de Arca Russa. Conta que fez uma retrospectiva dos filmes de Sokúrov em Marseille. Conta de sua preferência por grandes autores do cinema português. Cita Pedro Costa, o que leva a outro elogio - a Jean-Marie Straub e Danièle Huillet, tão próximos do exigente cineasta português. E não deixa de reverenciar o gênio de Manoel de Oliveira. Faz uma confissão: "Estou no novo filme dele." Pouco antes de vir para o Brasil, ele rodou sua cena com Catherine Deneuve, de novo associada ao grande cineasta do Porto. Esse novo filme de Oliveira se chama Filme Falado. O repórter até brinca: "Oliveira, nas águas de Caetano Veloso?" O único filme dirigido pelo cantor e compositor, cinéfilo consumado, chama-se Cinema Falado.