Opinião | Em ‘Nosferatu’, Robert Eggers coloca sua linguagem a favor de história clássica

Longa-metragem consegue dar medo enquanto também conta uma inesperada história de amor

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Foto do author Matheus Mans

“O mal vem de dentro de nós ou do além?”, questiona Emma, personagem de Lily-Rose Depp, em determinado momento de Nosferatu. A protagonista está alucinando, em uma espécie de transe, mas o questionamento não deixa de trazer verdade: a origem do mal, vindo de dentro de nós ou de fora, é o principal tema do filme, que estreia nesta quinta-feira, 2.

Dirigido por Robert Eggers (A Bruxa), o longa é a reinterpretação do clássico de 1922 – e que, por sua vez, é uma adaptação não autorizada de Drácula, de Bram Stoker. Na trama, Thomas (Nicholas Hoult) é enviado à Transilvânia para finalizar uma transação imobiliária com um conde que, dizem, está definhando e quer se mudar durante a sua aposentadoria.

Lily-Rose Depp é a protagonista desta releitura do filme sobre o vampiro Nosferatu Foto: Universal Pictures/Divulgação

Mas não é bem isso. Thomas é apenas a isca para que Orlok (Bill Skarsgård), o tal conde-vampiro que dá nome ao filme, se mude para a cidade em que o agente imobiliário mora. O motivo? Emma. A esposa do personagem de Hoult é a paixão de Nosferatu. Ele precisa de uma alma para levá-lo até lá e, enfim, viver para sempre com a sua amada.

Adaptação da adaptação da adaptação

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Esse é o coração de Nosferatu: um amor improvável, uma personagem fora de si e uma ameaça que paira no ar. Eggers, bebendo do filme de 1922 e também da adaptação feita por Werner Herzog em 1972, segue essa história que já conhecemos, de amores impossíveis, monstros e vampiros que circulam pela noite, bebendo sangue de inocentes.

A diferença primordial, e que coloca um brilho a mais no novo Nosferatu, é como a relação de Emma e Nosferatu, com Thomas atravessando a história, não é óbvia. A protagonista vive tendo visões do vampiro e se lembra do relacionamento que já teve com a criatura. Ninguém acredita nisso. É sonho, é delírio, é loucura – ou seria ela, então, uma feiticeira?

É a discussão que surge a partir da frase dita por Emma, em delírio, a respeito de de onde vem o mal. Nosferatu, por mais que exista fisicamente, é como uma presença maligna que atinge a cidade em que moram. Há peste, mortes, loucura. De onde está vindo isso? Eggers não busca, de forma alguma, respostas claras sobre a origem do mal. Não é esse o ponto.

O que Nosferatu quer é mostrar as diferentes reações com o mal. Por vezes, o mal vem do além – é a peste, é a tragédia da natureza, é a pessoa que nos trata mal e deixa a mácula de um abuso. Outras vezes, porém, nasce de dentro, como uma loucura ou um delírio, sem explicação. Quando tratada como louca, Emma não está errada: é apenas interpretada de forma errônea até o momento que a compreendem. Aí, loucos são os outros fora da bolha.

Essa discussãoconduz Nosferatu, dando uma diferença primordial ao que já foi contado nos anos 1920 e depois nos anos 1970. Como o mal surge? Como acreditar no mal? Loucos ou apenas pessoas que conseguem, enfim, enxergar o que não vemos?

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Isso tudo aumenta ainda mais a importância da personagem de Emma, que deixa de ser o bibelô cortejado por homens e vampiros e passa a ser alguém com um trauma e que não sabe lidar com isso.

Filha de Johnny Depp, Lily-Rose acerta no tom: está deliciosamente exagerada, sempre alguns tons acima, ajudando a misturar terror com uma aura de choque com tudo de absurdo que está acontecendo ali. É complementada bem por Willem Dafoe, que também parece estar mais se divertindo do que assustado com tudo aquilo -- não coincidentemente, são os personagens considerados loucos pelos outros.

Tela grande

Estadão assistiu ao filme, em uma sessão para imprensa no final de 2024, em uma sala IMAX – tela grande, som potente. Isso faz uma diferença tremenda. Não é apenas preferência pela experiência no cinema, mas Eggers tem um cuidado especial com o visual do filme. Várias cenas, filmadas em uma Alemanha do século 19, transportam o espectador para dentro do ambiente. Tudo é frio, duro, cheio de ângulos – típico do expressionismo alemão.

Bill Skarsgård é um Nosferatu bizarro e perturbador, quase viril Foto: Universal Pictures/Divulgação

Mais do que isso, o visual de Nosferatu conversa com o público. O longa transita entre cores e preto e branco com naturalidade, sem avisar. É a fotografia magistral de Jarin Blaschke, parceiro do diretor em todos seus outros projetos desde A Bruxa, que causa isso: quando o vampiro surge, as cores do mundo somem. Amplia a sensação de medo.

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Fora que Bill Skarsgård como Nosferatu é outro ponto a se observar. Quando foi anunciado para o papel, surgiu certa preocupação entre a crítica – será que o jovem ator fará uma variação de Pennywise, de It: A Coisa, apenas? Mas não: ele cria um Nosferatu bizarro, até estranhamente viril, que mais se aproxima da obra de Herzog. É estranho e perturbador, apesar de alguns elementos levemente fora de tom, como o bigodão e a respiração asmática.

Nosferatu, no final, pode soar um tanto repetitivo. “Pra que mais uma adaptação?”, foi o que mais foi dito antes da sessão para imprensa. Mas Eggers se faz presente visualmente e, mesmo repetindo histórias, faz com que Nosferatu continue vivendo.

Tramas de vampiros existem ao montes, do clássico de 1922, passando pela interpretação de Francis Ford Coppola e até chegar aos vampiros brilhantes de Crepúsculo. Agora, Eggers faz uma espécie de declaração, ou até de reafirmação, de onde os filmes sobre vampiros precisam (e devem) estar: nas sombras, aterrorizando as pessoas nas salas escuras de cinema.

Opinião por Matheus Mans

Repórter de cultura, tecnologia e gastronomia desde 2012 e desde 2015 no Estadão. É formado em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie com especialização em audiovisual. É membro votante da Online Film Critics Society.

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