Nada mais discutível do que a ética judaico-cristã de O Resgate do Soldado Ryan, de Steven Spielberg. O diretor transforma o Dia D num parque temático como o de qualquer outro de seus filmes espetaculares e usa o show de efeitos para dar suporte dramático à máxima do Talmude que diz que uma só vida vale o sacrifício de milhões. Para Spielberg o que vale é o democratismo dos shows, tanto faz que sejam soldados numa carnificina ou dinossauros num parque de fantasia. Ridley Scott não cai nesta cilada em Falcão Negro em Perigo. A produção, que estréia amanhã e concorre ao Oscar, reconstitui um episódio real ocorrido na Somália, em 1993. Os críticos viram apenas patriotada em Falcão. Um mais afoito chegou a escrever que Scott transforma o fracasso em glória. Devem ter visto outro filme. Quem transformou o fracasso em glória foi Ron Howard, que também concorre ao Oscar deste ano por Uma Mente Brilhante, em outro filme: Apollo 13. Os propósitos éticos de Scott talvez não sejam tão escusos assim. Seu filme não é uma exaltação patriótica do heroísmo. Não é nem sobre o heroísmo, como deixam claro duas falas importantes dos personagens. Um deles tenta explicar por que, superada aquela crise, já está embarcando em outra guerra. "É por causa dos companheiros", ele diz. É a mística do grupo, da solidariedade masculina. A outra é uma frase que diz que os soldados não agem por heroísmo, embora, às vezes, o que eles fazem seja heróico. Esse sim, talvez seja o tema de Scott. Logo no começo, letreiros informam o espectador do que se trata. Em 1993, havia multidões morrendo de fome ou na disputa por comida na Somália. O ditador Mohamed Farrah Aidad usava os suprimentos que a ONU enviava ao país como moeda de troca. Mandava fuzilar quem chegasse perto deles. Essa selvageria lhe valeu a alcunha de "Hitler da Somália". Com o país devastado pela fome e pela guerra entre clãs, os EUA decidiram intervir. Enviaram uma força de elite, formada por voluntários. Um deles é o personagem interpretado por Josh Hartnett. É um idealista, riem seus companheiros. Quer mudar o mundo. A percepção do espectador, com certeza, é o que muda. Você não viu nada tão brutal como a recriação da guerra nesse filme. Scott filma corpos destroçados. Na cena mais angustiante, um médico militar tenta localizar a artéria de um soldado que teve a perna decepada. Ele enfia a mão no buraco. O cara urra de dor. O sangue jorra aos borbotões. Há várias ações como essa. Na maioria das vezes, são inúteis. A vida humana não vale nada nos campos de combates. Para demonstrá-lo, Scott desenvolve uma série de episódios envolvendo os integrantes da força norte-americana que ficam sitiados no centro de Mogadíscio em decorrência de uma operação desastrada que culmina com a queda de um helicóptero. Parece a típica operação preparada para incentivar o fervor patriótico do público norte-americano. Os soldados da força de paz dos EUA agem com intenções humanitárias. São hostilizados por nativos a quem querem ajudar, mas que saltam sobre eles como tubarões. Segundo essa interpretação, o maniqueísmo seria evidente. Não é tão simples assim. Sam Shepard faz o oficial que comanda a operação. Na sua arrogância, diz que ela não demorará mais de 30 minutos, tempo suficiente para capturar dois homens da confiança de Aidad. Dá errado. O general mastiga nervosamente seu charuto e dá ordens que aumentam o desastre. Uma das maneiras de se entender Falcão é justamente vendo no filme o conflito entre a visão urgente de quem está metido no combate e a visão distanciada de quem comanda as ações. Os americanos são humanizados, mas não é certo dizer que os somalis sejam caricaturizados para realçar o heroísmo dos primeiros. Em primeiro lugar, porque esse heroísmo é constantemente posto em xeque. Americano quer ser herói. O soldado que está morrendo pede a seu superior que diga a seus pais como ele se portou com bravura. É uma cultura de guerreiros que querem ser heróis a qualquer preço. A cena mais esplendorosa bate na tela durante 15, talvez 20 segundos. Segue-se à cena longuíssima em que o médico procura a artéria que se retraiu na perna decepada do paciente. O espectador ainda está sob o efeito daquele horror quando um somali cruza a cena, em silêncio, com o corpo de uma criança no colo. Há tanta dor, que essa imagem grita no seu silêncio. Os somalis de Ridley Scott não são vilões despersonalizados para ressaltar o heroísmo. São gente. Não há glória na dolorosa carnificina de Falcão Negro em Perigo.