Fernanda Montenegro: ‘O Brasil caminha para o pior na área da sobrevivência humana’

Estrela de ‘Vitória’, filme baseado em história real, a atriz de 95 anos fala sobre o projeto em entrevista ao ‘Estadão’, e comenta a vitória do Brasil no Oscar: ‘Deus tarda, mas não falha’

PUBLICIDADE

Atualização:

Foi uma pré-estreia digna de Dona Fernanda – como Walter Salles, respeitosamente, se refere à grande Fernanda Montenegro. Na segunda, 10, à noite, autoridades e convidados lotaram o Teatro Municipal de São Paulo para o lançamento de Vitória. A cena se repetiu no Rio nesta quarta, 12, na Cidade das Artes.

O longa de Andrucha Waddington, o segundo original Globoplay (o primeiro foi Ainda Estou Aqui) estreia em salas de todo o Brasil nesta quinta-feira, 13. Baseia-se numa história real - a de Joana da Paz, mulher que, da janela de seu pequeno apartamento em Copacabana, numa das ruas de acesso à favela, assistia diariamente ao teatro de operações do tráfico, associado à polícia corrupta.

Josefina é seu nome fictício, mas todos a chamam de Dona Nina. Ela se revolta contra a violência, os tiroteios sem fim. Vai à delegacia e o major – corrupto – diz que não pode ficar atendendo às reclamações de todo mundo. É preciso provas. A idosa compra uma câmera e grava tudo – o horror.

Fernanda Montenegro vive Nina, personagem inspirada em Joana da Paz, no filme 'Vitória', que chega aos cinemas Foto: Suzanna Tierie/Divulgação

Na apresentação do filme, Dona Fernanda deixou subentendido que pode estar se despedindo do cinema. Prometeu continuar com as leituras, como a dos textos de Simone de Beauvoir, uma de suas grandes influências na vida, e que foi seu mais recente êxito no teatro.

Publicidade

PUBLICIDADE

“Na idade que estou, posso até continuar fazendo minhas leituras em palcos como estou fazendo há bastante tempo, mas cinema pede físico, pede fôlego. É um momento muito especial nesse palco aqui agora. Muito obrigada.” A eventual despedida dos filmes, de qualquer maneira, ainda terá de esperar, e tomara que seja por muito tempo.

Fernanda Montenegro tem outro filme já gravado, que fez com direção do filho, Cláudio Torres.

Aos 95 anos, Dona Fernanda não para. Na noite de terça, de volta ao Rio, participou de um evento na ABL, Academia Brasileira de Letras. Fez outras de suas leituras inspiradoras. Muita gente acabou ficando de fora, e a ABL se desculpou pela confusão.

Está presente em todas as cenas, movimenta-se sem parar em Vitória. Uma diferença e tanto em relação a Ainda Estou Aqui, em que faz a idosa Eunice Paiva, papel protagonizado por sua filha, Fernanda Torres.

Publicidade

Fernanda Montenegro aparece brevemente em 'Ainda Estou Aqui' em cena comovente Foto: Alile Dara Onawale/Divulgação

Eunice idosa sofre de Alzheimer, está presa àquela cadeira. Dona Fernanda não precisa mais que os olhos para nos dar conta da personagem. Três filmes no mesmo ano. E um megassucesso, Ainda Estou Aqui, com seus 5 milhões de espectadores.

Quem garante que Dona Fernanda não irá arrebentar novamente com Vitória? O filme possui similaridades com O Outro Lado da Rua, de Marcos Bernstein, de 2004, também protagonizado por ela. Outra janela indiscreta e a anterior tinha muito mais a ver com o clássico Rear Window, de Alfred Hitchcock, de 1954.

Fernanda fazia Regina, a aposentada que integra uma rede de colaboradores da polícia. Da sua janela, a aposentada bisbilhota a vizinhança. Acredita ter testemunhado um crime, e se envolve com o presumível criminoso. A cinefilia atravessa O Outro Lado da Rua. Fernanda contracena com outro grande do teatro e do cinema, o falecido Raul Cortez.

Vitória é mais urgente, não se podendo esquecer que Andrucha Waddington dirigiu Sob Pressão, que deu origem à série de mesmo nome, da Globo. Dona Fernanda agora contracena com novos talentos. Linn da Quebrada, Alan Rocha, Thawan Lucas.

Publicidade

Ela fez algum tipo de conexão entre os dois filmes, as ruas personagens?

“A sua observação me fala muito, mas não relacionei. Nos velhos tempos, o Rio tinha montanhas cobertas com florestas até a Zona Sul. Mas na época de Joana da Paz, a Vitória, já lá estavam as favelas, com o crime organizado beneficiando a corrupção policial. Hoje, tudo piorou”, responde a atriz, em uma entrevista por e-mail.

Fernanda Montenegro e Alan Rocha em 'Vitória', filme que conta a história real de mulher que passou a vigiar a movimentação do tráfico de drogas em Copacabana Foto: Suzanna Tierie/Divulgação

Vitória era um projeto de Breno Silveira, com roteiro da mulher dele, Paula Fiuza. Quando Breno morreu, em plena filmagem, Andrucha foi cooptado por Paula a seguir em frente com o projeto. “Paramos durante quatro meses e retomamos com leituras com o elenco. Para mim, terminar esse filme foi homenagear o Breno. E dois meses depois do término das filmagens, a Dona Joana faleceu e teve sua identidade revelada. Esse filme também é uma homenagem a ela”, diz Andrucha.

Publicidade

Joana era uma mulher preta e a decisão de fazê-la interpretar por Fernanda Montenegro teve o objetivo inicial de protegê-la. O repórter branco foi transformado em negro. Alan Rocha faz outro repórter em Ainda Estou Aqui. Nessa época de identitarismo, ninguém reclamou da mudança. Dona Fernanda é soberana no papel.

Assim como a metáfora da casa vazia fornece a chave para a interpretação do Brasil dos anos de chumbo por Walter Salles, em Ainda Estou Aqui, há outra ideia, ao mesmo tempo forte e delicada, que parece condensar tudo o que Andrucha Waddington está querendo dizer em Vitória. Mas, é claro, é preciso uma atriz como Dona Fernanda para chegar ao coração do público.

Na delegacia, Nina, interpretada por Fernanda Montenegro, tenta alertar os policiais sobre o que vê de sua janela Foto: Suzanna Tierie/Divulgação

Nina possui um conjunto de xícaras que provavelmente herdou da patroa rica. Uma delas tem uma lasca, mas são relíquias para ela. Durante um tiroteio, Nina assusta, deixa cair a xícara, que se quebra. Ela recolhe os cacos, e os cola. A xícara parece perfeita, recuperada. Mas o café vaza. Nina não diz nada, apenas olha. É preciso uma Fernandona para expressar o não dito. A xícara pode ser aplicada ao que ocorre com Nina/Vitória, a trans, o moleque cooptado pelo tráfico, o jornalista que não pensa só na matéria, mas se sente comprometido com a segurança de sua personagem.

“Vivemos uma época libertária, embora lutando, lutando e lutando. A temática do convívio humano diante do pior que a vida lhe oferece é inarredável. Como é inarredável a luta pelo respeito humano. A luta pelo ser humano. A temática do filme é sobreviver, ainda mais difícil debaixo da Linha do Equador”, diz a atriz.

Publicidade

Dona Fernanda gosta de dizer que vive esquizofrenicamente duas vocações – “O ser atriz e eu mesma. O trabalho vocacionado resolve metade da sua vida. A outra metade tem que ser cuidada dentro do seu instinto de sobrevivência – que é onde está o seu caráter.”

Ela gosta de lembrar que, quando jovem, foi moldada na leitura de uma feminista como Simone de Beauvoir. O Segundo Sexo abriu-lhe portas da percepção humana, e da condição da mulher na sociedade. Personagens como a Dora de Central do Brasil e a Nina de Vitória provavelmente nunca ouviram falar de Simone de Beauvoir. Dona Fernanda, sim.

A filósofa feminista de alguma forma persiste nas personagens? “Para uma atriz (ou ator) o instrumento de criação é ela mesma: corpo e alma. Introjetar um personagem em si mesmo exige saber dele tudo que o organiza. E o ator só existe ao carnificá-lo. Ao colocar sua vivência no personagem.”

Ainda Estou Aqui fez história como primeiro filme brasileiro a vencer o Oscar. Foram décadas de tentativa, inclusive com Central do Brasil, também de Walter Salles, que candidatou Fernanda Montenegro ao prêmio de melhor atriz da Academia de Hollywood. Como foi ver a filha, a não menos grande Fernanda Torres, repetir seus passos, sendo indicada para o prêmio?

Publicidade

“O Oscar de Walter Salles tem uma simbologia imensa para o nosso cinema. E tem como porta-voz a extraordinária interpretação de Fernanda Torres, dando conta desse sonho realizado. É um momento já histórico para o Cinema Brasileiro. Deus tarda, mas não falha.”

Mesmo sendo mãe, Dona Fernanda consegue falar objetivamente sobre a filha. Escreveu uma carta linda, lembrando a emoção que tiveram, Fernando Torres e ela, ao ver a filha menina estrear no palco no Teatro Tablado, no Rio, lá se vão muitos anos.

“Aos 12 anos ela já exibia um completo domínio de palco. Diante do fenômeno, aos prantos, lembramos a frase do grande ator Procópio Ferreira, que, no final da interpretação da jovem e eterna atriz Bibi Ferreira, sua filha, agradecendo o estrondoso aplauso ao final do clássico Mirandonina, de (Carlo) Goldoni, lançou em voz alta - ‘Senhoras e senhores, está lançada a minha filial.’ Fernanda Torres, desde a infância, sempre ordenou a sua vocação de uma forma independente, real e sublime. São quase 50 anos de criatividade em diversas áreas da nossa cultura artística. Coube a ela atravessar a Linha do Equador, justamente durante o nosso carnaval dionisíaco para se transformar, para sempre, num referencial transcendente de brasilidade.”

Para concluir, o que Dona Fernanda diria para motivar o público a ver Vitória? “É um documento só daquela época em que se passa a história dessa mulher extraordinária, Joana da Paz? Não! Nosso País continua caminhando para o pior na área da sobrevivência humana. O filme é um protesto. Vejam Vitória”, conclui.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.