Opinião | Filme sobre Maria Callas mistura fantasia e dor em história onde pouco importa o que é real ou não

Cinebiografia da famosa soprano, estrelada por Angelina Jolie e dirigida por Pablo Larraín, está em cartaz nos cinemas brasileiros

PUBLICIDADE

Foto do author João Luiz Sampaio
Atualização:

O fascínio pela soprano Maria Callas (1923-1977) gira em torno de dois aspectos: a beleza de sua arte e o final solitário da artista. Não são aspectos excludentes, e o imponderável resultante da união entre eles instigou dramaturgos e cineastas a criarem obras diversas sobre a cantora, como o filme Maria Callas, de Pablo Larraín, estrelado por Angelina Jolie, em cartaz nos cinemas.

Callas transformou o universo da ópera ao expandir seu repertório, criar interpretações pautadas por um respeito quase obsessivo pela partitura e ao estilo de época. E, em especial, pela presença no palco. É curioso, já que esse aspecto de seu trabalho está muito pouco documentado. Mas o fato de que são raríssimos os vídeos dela em cena não fez com que a diminuísse a celebração de seu legado como grande atriz, consciente de que a ópera é também, e acima de tudo, teatro.

Há, claro, o que dizem as críticas e relatos de época, mas essa é apenas parte da história. Callas, afinal, atuava também com a voz, com os coloridos que dava aos papéis, os silêncios, as pausas, a respiração, o modo como recriava as linhas melódicas. E, de sua voz, os registros são abundantes, feitos em sua grande maioria em estúdios, nos anos 1950 e 1960.

Publicidade

Angelina Jolie estrela a cinebiografia de Maria Callas, em cartaz nos cinemas Foto: Pablo Larraín/AP

Canto é desejo

PUBLICIDADE

Estrella Bohadana escreveu que canto é desejo. E, como o desejo, nada deseja a não ser desejar. Assim é o canto, ela continua: sem alvo, a nada visa, a não ser cantar. Seria uma boa definição para esse canto essencial de Maria Callas. E o fato de que a voz a abandonou em seus anos finais é, por isso mesmo, um dado trágico, ao qual se soma a desilusão amorosa resultante da relação com o magnata Aristóteles Onassis (1906-1975), que a deixou para se casar com Jacqueline Kennedy (1929-1994).

Não é por acaso que esse seja o período que mais se retrata da vida de Callas, seu final. E é a ele que se dedica também Pablo Larraín em Maria Callas. É um momento do qual se sabe mais do que o mistério em torno de figura tão fascinante pode sugerir. Cartas enviadas a alguns amigos pela soprano, assim como o relato dos amigos com quem conviveu nos últimos meses de vida, pintam um quadro razoavelmente claro sobre como a impossibilidade de cantar como em seu auge jogou a artista em um limbo no qual refletia sobre a separação entre Maria (com seus traumas de infância e desilusões pessoais) e La Callas.

“Eu gostaria de ser Maria, mas La Callas exige que me comporte com sua dignidade”, escreve ela em uma carta. “Gostaria de pensar que as duas na verdade são uma só, porque uma vez Callas também foi Maria”, corrige-se, dias depois.

Não importa o que é real ou ficção, mas didatismo atrapalha

Mas Maria Callas não é ópera ou documentário. É ficção. Larraín se mantém, é verdade, bastante próximo das fontes originais, muito mais do que Franco Zeffirelli, por exemplo: em seu Callas Forever, ele imagina uma última aventura de amor para Callas, que a faz respirar novamente algum sopro de vida. Mas a mão do cineasta chileno está na forma como escolhe trabalhar com esse material. A narrativa de Larraín se constrói como um mosaico, em que importa pouco o que é ou não real, e é a dúvida o ponto fundamental na construção de um estado de espírito no qual se relativiza o que é Maria, o que é Callas, e a mistura de fantasia e dor com que a personagem olha para o passado e o presente.

Publicidade

O excesso de remédios, calmantes e estimulantes, dos quais Callas fazia uso sem orientação médica, com certeza torna possível tal construção. Mas, além disso, e talvez mais importante, a escolha de Larraín aproxima o filme, em sua forma, do próprio dilema da soprano às vésperas da morte.

O cineasta enfraquece seu próprio ponto de partida, no entanto, no momento em que opta por um didatismo desnecessário. Seria mesmo preciso que, logo de início, Callas nos diga que, a partir daquele momento, será ela a decidir o que é real ou não? Ou batizar com o nome de um dos remédios que utiliza o cineasta que supostamente a acompanha enquanto prepara um filme sobre sua vida? Ou ainda, durante uma caminhada por Paris, fazer os passantes se organizarem em um coro?

No filme, a narrativa de Larraín se constrói como um mosaico, em que importa pouco o que é ou não real Foto: Fábula Pictures/Divulgação

Dor e sofrimento

Na voz do coro está a passagem inicial do segundo ato da ópera Il Trovatore, de Verdi, ambientada em uma aldeia medieval de ciganos. Em seguida, na partitura, não no filme, é introduzida a cigana Azucena, que conta como, tomada pelo desejo de vingança contra os nobres, queimou por engano em uma fogueira o próprio filho.

É provável que a escolha esteja relacionada ao episódio da gravidez interrompida do filho de Onassis – e, se assim for, a música pede seu protagonismo na narrativa. Na trilha, mais do que pedaços dos papéis interpretados pela soprano, impõe-se a Ave Maria, do Otelo, de Verdi. É uma escolha curiosa, uma vez que Callas nunca gravou o papel completo, mas não inocente: na cena, Desdêmona faz uma última prece antes que Otelo chegue para matá-la.

Publicidade

Isso dá importância à ação dos homens de sua vida como causa de sofrimento e, no limite, responsáveis pelo fim de sua vida. Mas talvez a escolha se dê apenas pelo clima nostálgico e doloroso da partitura à medida que o fim de Desdêmona se aproxima. E o fato de que Angelina Jolie nem sempre seja capaz de encontrar, em meio a essa nostalgia dilacerante, algumas nuances, está longe de ser um problema pequeno do filme.

Opinião por João Luiz Sampaio

É editor do Estadão, crítico musical e autor de 'Ópera à Brasileira', 'Antônio Meneses: Arquitetura da Emoção' e 'Guiomar Novas do Brasil', entre outros livros

Comentários

Os comentários são exclusivos para cadastrados.