E tudo acabou em samba e numa feijoada que varou a noite. A gravação do documentário sobre o sambista Zé Keti, que o cineasta Nelson Pereira dos Santos está dirigindo a convite da Petrobrás, começou numa manhã de domingo e não podia mesmo terminar de outro jeito. A casa onde o compositor morou nos últimos anos de vida, num condomínio popular em Inhaúma, zona norte, ficou lotada de sambistas, amigos, parceiros e companheiros de noitadas, que relembraram casos, cantaram sucessos e mataram saudade de Zé Kéti, que morreu em novembro de 1999. A família também estava lá para dar seu depoimento e fazer as honras da casa. A última mulher de Zé Kéti, Nely Maria Abade Selles, veio de São Paulo, assim como o filho dele, José Carlos de Jesus, que é afilhado de Nelson Pereira dos Santos. Geisa, filha do compositor e dona da casa, esfalfou-se para dar conta de atender à equipe técnica e às mulheres dos sambistas presentes, que fizeram um grupo animado nos corredores do edifício, tomando cerveja e refrigerante e enganando o estômago com tira-gosto. Na cozinha, Sônia, a outra filha, comandou o preparo da feijoada, servida depois da gravação, numa panela de quase um metro de diâmetro, que ficou vazia em pouco tempo. "Tem ainda mais um irmão e duas irmãs, que não puderam vir", disse José Carlos, parecidíssimo com o pai, emocionando-se ao lembrar de suas histórias. "Mas vieram dois netos, o Rodrigo, filho da Geisa, e o Felipe, meu filho, que estão lá dentro ajudando na música." Casos - Lá dentro era a sala do apartamento, onde a nata do samba carioca se espremia e contava casos: Guilherme de Brito, Nelson Sargento, Elton Medeiros, Walter Alfaiate, Noca da Portela, Monarco, Jair do Cavaco, Wilson Moreira, Délcio Carvalho, Dorina, Colombo da Portela e outros. A família do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, sobre quem Nelson Pereira fará uma série para a televisão no ano que vem, se fez representar pelas irmãs Miúcha e Pii, também amantes do samba e velhas amigas da turma. "Foi como uma sessão espírita para relembrar o Zé Kéti. Todos nós tivemos algo em comum com ele, uma história para contar, uma música para lembrar", disse Noca da Portela, quase mentor do documentário. Na verdade, Nelson Pereira, amigo do compositor desde muito antes de ele ceder a música A Voz do Morro (que ficou mais conhecida como Eu Sou o Samba) para o filme Rio 40 Graus, queria fazer um longa-metragem sobre ele. Queria contar sua vida e mostrar sua músicas. Não foi possível, por falta de verba, e mesmo esse documentário, que terá dez minutos, só pôde ser realizado com os R$ 10 mil da Petrobrás, que vai distribuir e ser dona do curta-metragem. Com o convite da estatal, Nelson lembrou-se da idéia que Noca da Portela havia tido no enterro de Zé Kéti e pôs mãos à obra. "Não dirigi a conversa, deixei eles falarem o que quisessem até por volta da 4 da tarde. Foi uma conversa informal que ficou no ponto, nem será preciso gravar mais", disse o diretor, enquanto a feijoada de Sônia era servida no playground do prédio e o samba começava com violão, cavaquinho, percussão e o auxílio de um saxofone. "Após a edição, a Petrobrás decide como será o lançamento", disse Nelson. Elton Medeiros, amigo e parceiro de Zé Kéti, achou tão bom que queria mais. Ele é conhecido por gostar de uma boa conversa e falar dos amigos. Colombo, da Ala dos Compositores da Portela, como foi o homenageado, aproveitou a oportunidade para tirar do baú casos esquecidos. "Nessas horas, a gente fala coisas que não costuma dizer nem quando está sozinho", filosofou. Os filhos de Zé Kéti consideram esse documentário a primeira iniciativa para organizar o legado do pai. "Ele deixou muita coisa inédita, além das mais de 200 músicas gravadas. Ainda não tivemos tempo de mexer nos seus guardados, mas, só de fitas cassete, tem mais de 300, com músicas dele e de outras pessoas", contou Geisa. "Há inclusive música sacra, que ele fez muito antes de Roberto Carlos. Só que o Roberto estourou e papai nem gravou." Geisa e José Carlos aproveitaram a deixa para cantarolar Missa Agrária, dos anos 70. "Na fita ele escreveu ´para Nelson Pereira dos Santos, grande cineasta, para sua apreciação e de seu filho, Ney Santana, que é um pouco meu filho também´", contou José Carlos. "Precisamos organizar o que ele deixou, para ficar à disposição de pesquisadores e de quem queira gravar sua obra." O almoço acabou por volta das 18 horas. Daí para a frente, seria a vez do samba. Os participantes do encontro, cerca de 40 pessoas, dividiam uma sensação de plenitude e dever cumprido, fruto da tarde agradável e - certamente - do feijão carinhosamente preparado por Sônia. A equipe técnica desmontava as luzes, enquanto Guilherme de Brito, sempre com Nena, sua mulher, ia embora, pois os dois nunca foram de noitadas. O samba estava só começando e, como disseram os amigos de Zé Kéti, já que era em homenagem a ele, foi até de manhã.