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Nova biografia aborda fobias, fetiches e contradições de Alfred Hitchcock

Livro de Edwardd White não oferece uma grande revelação, mas uma provocante nova forma de pensar sobre uma biografia

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Por Parul Sehgal

No mundo de Alfred Hitchcock, a semelhança é fatal. É a história de Um Corpo que Cai, de Charlie em A Sombra de uma Dúvida, batizado em homenagem a um tio amado que se revelou um notório assassino de viúvas ricas. Pense nos homens falsamente acusados em O Inquilino, O Homem Errado, Os 39 Degraus, A Tortura do Silêncio, Intriga Internacional e Frenesi.

O cineasta Alfred Hitchcock Foto: Estadão Acervo

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Claro, não havia ninguém que se parecesse com Hitchcock. Com seu uniforme de ternos escuros e seus modos vitorianos, ele era uma relíquia de seu próprio tempo. Apenas Mickey Mouse tinha um perfil mais inconfundível. E apesar de toda a influência de seus filmes, ele não tem herdeiros reais, ninguém que combine silêncio, suspense e sagacidade daquela maneira particular, com suas autorreferências e o emaranhado de fetiches e símbolos que se tornaram uma gramática própria - as escadas, as malas e as loiras geladas, as linhas paralelas, os sinistros copos de leite.

Diz-se que mais livros foram escritos sobre Hitchcock do que a respeito de qualquer outro cineasta. O elegante e modesto The Twelve Lives of Alfred Hitchcock (As Doze Vidas de Alfred Hitchcock, em tradução livre) de Edward White não oferece uma grande revelação, mas uma provocante nova forma de pensar sobre uma biografia.

Qualquer vida é um estudo em contradição - a de Hitchcock talvez seja mais do que a da maioria. Ele era um homem com medo do escuro que amava o cinema. (Outras fobias incluíam multidões e solidão.) Ele era famoso pela dedicação à esposa, mas diziam que a traía com atrizes e assistentes. Um homem envergonhado por seu corpo (o “profeta de 136 quilos”, como o The Saturday Evening Post o chamou), atormentado pelo autodesprezo, que, no entanto, possuía um enorme desejo de ser visto e implacavelmente usava seu corpo como uma ferramenta promocional.

Aqueles filmes - eram arte ou entretenimento? Eram "ratoeiras", segundo Pauline Kael, ou Hitchcock era "o maior criador de formas do século 20", como disse Godard? “Hitchcock teve sucesso onde Alexandre, o Grande, Júlio César, Napoleão e Hitler falharam”, escreveu Godard: “ao assumir o controle do universo”. O próprio Hitchcock ignorou tal seriedade. Deixem para outros diretores a tarefa de registrar fatias da vida ao público; ele queria que seus filmes fossem "fatias de bolo".

White não reconcilia essas contradições. Não é necessário. Ele apresenta ao leitor 12 retratos de Hitchcock tirados a partir de 12 ângulos - incluindo The Boy Who Couldn’t Grow Up (O menino que não conseguiu crescer), The Voyeur (O voyeur), The Pioneer (O pioneiro), The Family Man (O homem de família), The Womanizer (O mulherengo), The Dandy (O dândi). Não há veredicto a ser emitido, nenhuma identidade única mais autêntica ou verdadeira. Seus "eus" se chocam e coexistem, como fizeram em uma vida que abrangeu o surgimento do feminismo, da psicanálise e da publicidade de massa, e uma carreira que se delineava na história do próprio cinema, da era muda ao surgimento da televisão.

Estranhamente, por meio dessas refrações, obtemos uma percepção mais suave e coesa de um homem tão hábil em brincar com seu público, dentro e fora da tela. (Eu teria acrescentado um 13º ângulo, no entanto: O dissimulador, para falar da alegria de Hitchcock em fazer declarações contraditórias a respeito de sua vida.)

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Nas próprias palavras do cineasta, “o homem não é diferente do menino”. A tarefa tradicional dos biógrafos de Hitchcock tem sido localizar o evento definidor que se tornou a fonte de seu interesse ao longo da vida pela paranoia, vigilância e violência sexual. O biógrafo como detetive, por assim dizer, vagando pela casa de Bates em Psicose, em busca do corpo da mãe, o trauma que tudo revela. Hitchcock estava apenas brincando (ou dissimulando), apresentando teorias: as duras surras de padres jesuítas, o fascínio precoce por Edgar Allan Poe, o dia em que seu pai o deixou inexplicavelmente em uma prisão por algumas horas para lhe ensinar uma lição quando era uma criança.

White se entrega a essas explicações enquanto sutilmente muda o foco para o que Hitchcock raramente discutia - a morte de seu pai e a tensão de viver durante a guerra - "o mesmo tipo de suspense tortuoso e ansiedade que eram recursos de Hitchcock adulto". Crianças e bebês da vizinhança morreram nos ataques aéreos, e White sugere que Os Pássaros - com os ataques a uma escola e as fotos aéreas pioneiras - podem ser vistos como a maneira de Hitchcock de reviver o terror.

O desejo frustrado e não satisfeito é o fio que atravessa a obra de Hitchcock. Curiosamente, as biografias de artistas podem inspirar um sentimento semelhante. Como leitores, podemos esperar ver a vida bem documentada e a obra analisada, mas a conexão, o fio entre as duas? White nunca força uma explicação ou coerência. A estrutura apresentada vibra, como nos melhores filmes de Hitchcock, com intuição e mistério. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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