O que seria do cinema iraniano no Brasil sem a Mostra Internacional de São Paulo? Foi a mostra que descobriu, selecionou, bancou e, finalmente, distribuiu os filmes que ajudaram a estabelecer, no País, o bom conceito de que goza o cinema do Irã. Abbas Kiarostami, Moshen Makhmalbaf, Jafar Panahi, Samira Makhmalbaf - todos chegaram ao mercado brasileiro via Mostra. A 24.ª edição do evento abre, mais uma vez espaço para os iranianos. Exibe uma seleção muito boa de filmes do país dos aiatolás. E amanhã vai além - promove, no fim de noite, na Sala UOL, em São Paulo, um debate com os diretores iranianos presentes na cidade. Lá estarão Panahi, de O Círculo, Leão de Ouro em Veneza. Já é um autor conhecido e consagrado. Vale conhecer os outros que estarão na mesa - Hassan Yektapanah, diretor de Djomeh, Bahman Ghobadi, que assina Tempo de Embebedar Cavalos, e Mahmoud Behrazinia, ator de Djomeh e diretor do documentário Close-Up Kiarostami, sobre o autor de Gosto de Cereja. O debate promete. Estará em discussão o conceito que tantos tentam enterrar, nesta era de globalização - o humanismo. Se o cinema iraniano a tantos encanta, em todo o mundo, só pode ser por sua face humana. Aos filmes citados, dos diretores que integram a mesa desta noite, é preciso acrescentar mais dois que também estarão em cartaz no fim de semana - O Quadro-Negro, de Samira Makhmalbaf, e A Dama, de Dariush Merjhui. A filha de Moshen Makhmalbaf constitui um caso à parte. Quando ela surgiu, uma garota de apenas 18 anos assinando A Maçã, podia ser considerada uma excentricidade. Com O Quadro-Negro, Samira confirma que é mesmo uma verdadeira cineasta. O filme não recebeu por acaso o prêmio do júri no Festival de Cannes deste ano. Como Bicho de Sete Cabeças, de Laís Bodanski, O Quadro-Negro também foi finalizado na Itália, com recursos da Fabrica, a divisão da Benetton para o cinema. Laís contou o quanto Samira é estimada na Itália e quanto esse prêmio significa para a Fabrica, que faz seus investimentos em cima selecionando projetos do Terceiro Mundo, assinados por diretores estreantes (ou que estejam no segundo filme). É significativo que Laís e Samira sejam também mulheres. Elas não devem ter sido escolhidas só por isso, mas a Fabrica, com certeza, não quer só destacar esse novo olhar feminino - também quer chamar a atenção para o fato de que as mulheres diretoras, por mais talentosas que sejam, são muitíssimo menos numerosas que os diretores. O Quadro-Negro passa-se na fronteira do Irã com o Iraque - o mesmo cenário de Tempo de Embebedar Cavalos. Trata de temas como a educação e a terceira idade, por meio desses professores que, com o quadro-negro às costas, buscam alunos. Um cenário de destruição e de guerra. E o peso da idade. Samira, mulher e jovem (hoje com 20 anos), entende perfeitamente o drama desse velho que tenta desesperadamente, mas não consegue urinar. É isso que faz o artista - sua capacidade de entender o outro, de decifrá-lo, homens falando de mulheres, uma jovem falando de homens (e velhos, ainda por cima). Por meio desses professores, Samira fala sobre seu país em busca de identidade. Não é um filme perfeito. Abusa das metáforas, que às vezes se tornam redundantes, mas o rigor do olhar leva a jovem diretora a transformar a árida paisagem em personagem fundamental do seu drama. A paisagem também é decisiva em Tempo de Embebedar Cavalos, que assinala a estréia do ator de O Quadro-Negro e assistente de Kiarostami em O Vento nos Levará na direção. Ghobadi ganhou o prêmio da crítica para os filmes que integravam as mostras paralelas de Cannes e dividiu com Djomeh o importante prêmio Caméra d´Or, para diretores estreantes. Na invernal paisagem do Curdistão, Ghobadi acompanha os esforços de alguns irmãos para sobreviver. Ele mesmo diz que filma para emocionar - e emociona sem pieguismo com esses personagens, um dos quais é um menino deficiente. É um belo filme, em certos momentos triste de cortar o coração. Djomeh, também premiado em Cannes, talvez cause estranhamento pelo radical uso do campo-contracampo nos diálogos dentro do carro. Yektapanah não tem medo de parar a câmera no rosto de um dos homens que falam. Ela fica assim por longos minutos, enquanto a paisagem passa rapidamente ao fundo. Ele corta e adota o mesmo procedimento com o outro homem que conversa. O que eles dizem não é, nem de longe, irrelevante. Djomeh conta a história de um afegão que vai trabalhar no Irã. Tenta criar raízes, casando-se com uma jovem iraniana. Mas não é fácil vencer o preconceito - ele é sempre o outro. E dessa maneira Yektapanah consegue compor um quadro histórico e social. O diretor segue com a câmera o protagonista em seus deslocamentos de bicicleta. Está sempre ocorrendo alguma coisa ao fundo. Um casamento, mulheres que estendem roupa, que tiram o pó de tapetes. Cenas da vida cotidiana. O fundo de Djomeh completa a visão do artista sobre o país.