Streamings brasileiros apostam em curadoria e cinema independente para conquistar espaço

Em um mercado competitivo, plataformas como Reserva Imovision, Filmelier+ e Filmicca encontram seu nicho oferecendo o que Netflix e companhia deixam passar

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Foto do author Matheus Mans

No universo dominado por gigantes como Netflix, Max, Prime Video e Disney+, parece não haver espaço para novos serviços de streaming. Mas alguns empresários brasileiros discordam dessa premissa. Nos últimos anos, executivos do setor audiovisual nacional identificaram uma lacuna: o público órfão de filmes menores, antigos e independentes.

Plataformas como Filmicca, Belas Artes À La Carte, Reserva Imovision e Adrenalina Pura trilham caminho oposto ao das grandes corporações. Enquanto a Netflix se desdobra para agradar diversos públicos simultaneamente, esses serviços menores, com operações mais enxutas, nem cogitam competir com os americanos. Seu foco está no cinéfilo, no apreciador que busca curadoria e sabe que encontrará produções de qualidade nessas plataformas.

'Flow', animação da Letônia indicada ao Oscar, é a aposta do streaming independente Filmelier+ Foto: Mares Filmes/Divulgação

“Há uma demanda crescente por serviços que organizem o conteúdo e ofereçam curadoria”, afirma Fabio Lima, fundador da Sofá Digital, agregadora de filmes e operadora dos streamings Adrenalina Pura, focado em cinema de ação, e do Filmelier+, lançado em março para fãs de cinema, com títulos como Flow e Sem Chão em breve no catálogo. “É a ‘terceira onda do streaming’, a era da curadoria. Com tantas opções, consumidores ficam paralisados pelo paradoxo da escolha e não assistem nada. Outros optam pelo básico.”

Estratégia pelas bordas

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Essas pequenas plataformas crescem pelas bordas. Em vez de disputarem blockbusters americanos de orçamentos milionários, apostam em produções menores, geralmente europeias ou asiáticas, que enfrentam dificuldades até para chegar às salas de cinemas.

Nos EUA, esse movimento já está consolidado. Segundo pesquisa recente da Antenna, empresa que monitora o setor de streaming, 31% dos consumidores de serviços de assinatura (SVOD) realizaram transações em plataformas especializadas ou de nicho até o final do segundo trimestre de 2024. Não há números do Brasil, mas essas plataformas especializadas são similares às plataformas brasileiras focadas em cinema independente.

A proposta é que esses serviços encontrem seus públicos específicos, sem ambicionar a liderança de um setor já saturado. “É um movimento muito positivo”, analisa Hugo Harris, coordenador do curso de cinema da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Em um mundo onde muita gente usa o torrent, os streamings independentes trazem possibilidades valiosas. Não são só filmes independentes, claro, mas também aquelas produções menos ‘procuráveis’ pelo público geral – filmes que não interessam tanto a uma Netflix, produções menores ou mais antigas que você encontra nessas plataformas.”

O paradoxo da escolha

É curioso como esse movimento dos streamings especializados – ou “specialty channels”, em inglês – nasce de uma necessidade criada pelos próprios gigantes do setor. No passado, com cinema, DVD, TV paga e TV aberta, havia um gargalo na distribuição. Os canais funcionavam como curadores, selecionando o que seria exibido, mas a oferta era limitada. Hoje, o cenário se inverteu: há abundância de conteúdo e escassez de curadoria.

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Netflix e Prime Video, por exemplo, priorizam seus conteúdos originais, sejam filmes ou séries. Essas produções recebem destaque, enquanto muitas obras se perdem em um oceano de opções. Surge então o "paradoxo da escolha" – a dificuldade do espectador em decidir o que assistir. É corriqueira a cena de pessoas rolando a tela até cansar e desistir.

Em meio à 'pós-guerra dos streamings', plataformas apostam pesado em serviços de curadoria Foto: Diego Cervo/Adobe Stock

Na Filmicca, streaming independente no ar desde 2021, a principal aposta é justamente a curadoria. A plataforma seleciona obras que “provocam algum sentimento”, desde restaurações de clássicos, como O Piano, até sucessos contemporâneos de novos cineastas ou filmes premiados. “É um trabalho de formiguinha. Queremos chegar ao público que busca uma curadoria com propósito”, explica Gracie P. Leite, idealizadora da Filmicca.

A plataforma mantém o compromisso de ter 50% do catálogo formado por filmes dirigidos por mulheres. “É uma curadoria que valoriza o cinema e novos cineastas”, ressalta Gracie.

É o novo momento que vivemos, como ressalta Fabio Lima, em que a curadoria é a rainha em uma terra dominada pelo conteúdo. “Com tantas opções, muitos consumidores ficam paralisados pelo paradoxo da escolha e acabam não assistindo a nada. Outros se contentam com o básico. Isso impulsiona o crescimento dos ‘specialty channels’. Eles ganham espaço tanto pela demanda dos consumidores quanto pela forma como são distribuídos, integrados como canais em marketplaces como Prime Video e Apple TV”, diz.

Assim, muitos serviços não precisam de aplicativo próprio para serem assinados. Reserva Imovision, Filmelier+ e Aquarius podem ser contratados diretamente no Prime Video, na aba de canais. É uma vitrine que amplia a visibilidade dessas plataformas. A partir daí, o usuário conhece a curadoria de cada serviço e decide qual faz mais sentido para seu perfil.

Tela de introdução do Reserva Imovision. Foto: Reprodução de tela

Juliana Brito, diretora executiva do Belas Artes Grupo, acredita que a curadoria é o grande diferencial. “Não queremos que a pessoa deixe de assinar Netflix para assinar o Belas”, afirma em entrevista. “Queremos que continue com a Netflix e complemente com o À La Carte. Considero saudável a concorrência entre os streamings brasileiros independentes, já que cada um tem seu perfil curatorial que dialoga com diferentes tipos de público”.

O preço de um cafezinho

Segundo pesquisa da Serasa divulgada no ano passado, serviços de streaming já fazem parte do orçamento de 79% dos brasileiros. Em média, usuários mantêm duas assinaturas e gastam até R$ 100 mensais. Uma assinatura padrão da Netflix, sem anúncios, custa a partir de R$ 44,90 por mês. O Prime, mesmo após aumento, segue como o mais acessível entre os grandes, a R$ 19,90 mensais. Já a Max, sem anúncios, começa em R$ 39,90 por mês.

Diante desse cenário, como os canais especializados conseguem espaço no bolso do consumidor? Como entrar na conta média de R$ 100 mensais em assinaturas?

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A estratégia dessas plataformas é oferecer mensalidades competitivas, significativamente mais baixas que as dos gigantes. O Filmelier+ cobra R$ 14,90 ao mês, o Reserva Imovision custa R$ 24,50 mensais, o Belas À La Carte sai por R$ 12,90 e o Filmicca, por R$ 24,90 mensais. Ou seja: é possível combinar duas dessas assinaturas pelo preço de uma Netflix.

A Filmicca aproveitou justamente esse diferencial para se promover. Recentemente, lançou uma promoção oferecendo a assinatura anual por R$ 60. “Foi a maneira que encontramos de divulgar o streaming, que é independente entre os independentes”, destaca Gracie. “O resultado foi positivo, com pessoas conhecendo o serviço graças ao alcance da promoção.”

Fabio Lima observa que o comportamento do consumidor está cada vez mais semelhante ao modelo TVOD – a modalidade de aluguel e compra de filmes, em que se paga apenas pelo que quer assistir. “Pessoas navegam pelo interesse, não pelo serviço. Se alguém quer um filme, assina o serviço, assiste e cancela. A jornada tornou-se muito mais fluida”.

Vitória do cinema independente

Enquanto mais plataformas surgem em busca de nichos específicos, há um beneficiário: o cinema independente. No ambiente digital, existe um volume imenso de conteúdo, mas isso não significa que todas as obras encontram espaço. Muitos filmes acabam passando despercebidos, à margem do streaming comercial.

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“A Netflix, o Prime Video e outros serviços fazem curadoria de conteúdo por questões econômicas e também por serem produtores de conteúdo próprio. Isso resulta em uma grande quantidade de filmes independentes que não encontram espaço ou dependem da licença de uma grande plataforma”, explica Fabio Lima. “Com a recente ‘pós-guerra do streaming’, as grandes plataformas passaram a comprar menos conteúdo independente.”

Com os serviços especializados, é possível descobrir pérolas do cinema – recentes ou não – com o destaque que merecem. Quem entende profundamente esse mercado é Jean-Thomas Bernardini, responsável pelo Reserva Imovision – e pelo cinema e distribuidora homônimos. Ao longo da carreira, ele já negociou mais de 600 filmes e acredita que o streaming pode ajudar a democratizar os chamados “filmes do meio”.

Jean-Thomas Bernardini, responsável pelo Reserva Imovision, acredita que o streaming possa ajudar a popularizar filmes que de outra forma não chegariam ao mercado brasileiro Foto: Silvana Garzaro/Estadão

“A Imovision tem uma filosofia de trazer filmes premiados internacionalmente, mas que estabeleçam relação com o público. Não podem carregar o estigma de ‘arte’. Muitos filmes que lançamos são campeões de bilheteria em seus países de origem. Aqui, porém, distribuidores os descartam por não serem falados em inglês”, explica. “Ficamos limitados a um circuito de arte, mas são filmes acessíveis a qualquer público. O digital corrige isso.”

Um dos desafios da distribuidora Imovision é justamente a dificuldade de alcançar cidades menores – problema que o streaming consegue resolver. “Estamos limitados às capitais – no interior, quase não temos presença”, lamenta Jean-Thomas. “Quando criamos a plataforma, pensamos nisso. Quem vive no interior, no sertão, e quer ver esses filmes, agora pode. Mesmo que sejam apenas 10 ou 15 pessoas interessadas, tudo bem. Elas não encontram essas obras no cinema local, mas no streaming sim. Isso democratiza o cinema independente e de arte. No final das contas, é formação de público.”

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