O Milagre de Berna, um filme sobre futebol do alemão Sönke Wortmann, ainda pode ser visto num único horário e num único cinema, às 18h no Cineclube Vitrine, lá na rua Augusta. Recomendo a quem goste de cinema e de futebol, essa conciliação tão difícil de ser feita. O tal ?milagre? se refere ao resultado do jogo final da Copa do Mundo de 1954, realizado na Suíça: 3 a 2 para a Alemanha, vencendo a inexpugnável Hungria de Kocsis, Puskas, Czibor e Hidegkuti. Essa mesma Hungria, vale lembrar, eliminou o Brasil por 4 a 2. Disse acima que O Milagre em Berna era um filme sobre futebol, mas não é apenas isso. Sönke Wortmann, que antes de se tornar cineasta foi jogador profissional, monta uma história interessante. A família Lubansky mora numa cidadezinha industrial e espera pela volta do pai, há onze anos prisioneiro de guerra na então União Soviética. Nesse meio tempo, o garoto Matthias, em busca de uma figura paterna, a encontra no jogador Helmut Rahn, que irá fazer parte da seleção vencedora. O filme se passa em dois planos: os problemas de relacionamento entre o pai, que finalmente é solto, e sua família, e de outro lado, a seleção alemã que viaja para a Suíça e faz seus primeiros jogos em busca do improvável título mundial. A parte mais interessante para quem curte o jogo da bola reproduz a estratégia do técnico Sepp Herberger, que estreou com vitória sobre a Turquia mas depois, inexplicavelmente, escalou um time reserva para a uma primeira partida, não eliminatória, contra a Hungria, o bicho-papão do torneio. Perdeu por 8 a 3, mas poupou o time e, sobretudo, escondeu o jogo para as partidas decisivas. Antes da partida final, vemos o ?professor? no quadro-negro explicando que o badalado Puskas não era o jogador a ser temido. O problema maior era o armador Hidegkuti. Por ele passava todo o jogo, e se fosse anulado, a máquina húngara emperraria. Herberger constata ainda a importância do fator acaso. Na véspera do jogo lhe perguntam se a Alemanha teria alguma chance. Ele responde: ?com tempo seco, nenhuma; se chover, podemos ganhar?. Chove. Mesmo assim a Hungria fez 2 a 0, mas a Alemanha virou o jogo e levou o título, o primeiro dos três ganhou. Essa fábula, que aconteceu na realidade, é cheia de significado. A Alemanha havia perdido a guerra. Era um país devastado, dividido em dois, ocupado. Além do mais, o passado nazista estava muito próximo e pesava como chumbo, mais do que a derrota na guerra e todas as suas conseqüências econômicas decorrentes. Era um país que precisava fazer as pazes consigo mesmo e livrar-se dos fardos do passado. A vitória na Copa da Suíça foi um dos fatores dessa reconciliação. No final do filme, esse sentido de reencontro fica claro. Um letreiro nos informa que aquela seleção vencedora nunca mais voltou a jogar com a mesma formação. No ano seguinte à Copa, 1955, o último prisioneiro de guerra seria libertado. E, ao mesmo tempo, teria início a recuperação que ficou conhecida como milagre econômico alemão. O filme foi um grande sucesso em seu país. Fez mais de 3 milhões de espectadores no ano passado. Nenhuma surpresa: ano que vem, pela segunda vez, a Alemanha, agora integrada à comunidade européia, realiza sua segunda Copa do Mundo. Por montar essa rede de significados entram no filme vários elementos: o pai prisioneiro, que volta amargurado e representa o passado; a criança, que simboliza o futuro e se sente momentaneamente perdida, porque sem referências. Por fim, aparece um jogo em que, pela astúcia mas também pela força de vontade, se pode vencer um adversário superior. Aglutinando todos esses elementos está o futebol, o jogo humano por excelência. Por alguém disse, com razão: ?Engana-se quem pensa que o futebol é questão de vida ou de morte - é muito mais do que isso?. E por isso dá pena quem tenta reduzi-lo a mera atividade econômica ou de marketing.
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