Confesso que me senti como Woody Allen degustando o mágico retorno à sua adorada Paris dos anos 1920. Para quem gosta de pianismo, as quase duas horas de encantamento diante de um músico sem limites foram uma autêntica viagem no tempo - mais ou menos como estar na platéia de um recital de Franz Liszt em Paris, na década de 1830, sentado ao lado do poeta Heinrich Heine. O recital do pianista canadense Marc-André Hamelin, 50 anos, anteontem, na Sala São Paulo, transportou o público para a era dourada dos grandes virtuoses do teclado, no século 19. Hamelin fez música de alta qualidade, superando partituras dificílimas, que no papel parecem simplesmente impossíveis de serem tocadas sem erros.
Erro, aliás, é palavra que não existe em seu dicionário. Ele estava à vontade, naturalmente seus dedos se multiplicaram para dar conta, por exemplo, do Rudepoema, de Villa-Lobos, de um modo tão articulado, claro, perfeito como jamais se ouviu (e isso inclui pianistas do porte de Roberto Szidon e Nelson Freire, cujas leituras ficam aquém do que se ouviu na sala). Ele revive a linhagem especialíssima dos superpianistas que se impuseram a partir da segunda metade do século 19 como astros da vida musical. Naquele momento, o centro de gravidade da música começava a se transferir da composição para a performance. Não por acaso, pianistas como Godowsky escreveram versões pirotecnicamente dificílimas dos Estudos de Chopin. O primado da performance sobre a criação transformou sobretudo pianistas e maestro em semideuses. A pergunta com relação a Hamelin é: como ele consegue tudo isso sem aparentar esforço? Com talento e habilidade técnica sem limites. Ao longo do tempo, muitos músicos tecnicamente superdotados sucumbiram à sua porção circense. Nem mesmo Hamelin resiste a essa tentação. Logo ele, que construiu sua carreira sobre repertórios de compositores-pianistas desconhecidos como Alkan, Feinberg, Medtner, Roslavets e Sorabji, entre outros. A tal ponto que escreveu, em 1998, um ótimo livro em parceria com Robert Rimm (The Composer-Pianists: Hamelin and The Eight). Superpianistas vivem numa perigosa corda bamba. O recital de anteontem provou isso. A primeira parte foi musicalmente sensacional. Uma leitura perfeita da primeira sonata de Alban Berg, de seus tempos em que a tradição falava bem mais alto que a vanguarda vienense da virada do século 20; um arrebatamento sutil e refinado na desafiadora música para piano de Gabriel Fauré, ídolo preferencial de Magda Tagliaferro, na Paris do começo do século 20, com direito a levíssimos sobrevôos do teclado inteiro combinados com uma musicalidade admirável; e a referida versão, para mim paradigmática, do Rudepoema do Villa. Com o público subjugado a seus pés, Hamelin abriu a segunda parte com suas Variações sobre um tema de Paganini, um mero exercício de estilo onde se deixou levar por clichês como citações bombásticas de Beethoven e tantos outros que se encantaram com o diabólico Niccolò, incluindo Liszt e a Campanella, claro. Ele não é bom compositor. Nem precisa. Já é um grande, extraordinário intérprete. O bloco Rachmaninov, que encerrou o recital, com dois prelúdios do opus 32 e a sonata nº 2, manteve a adrenalina elevadíssima mas fez cair sensivelmente a musicalidade. Não por culpa de Hamelin, sempre no auge de suas extraordinárias habilidades pianísticas, mas por causa da própria música de Rachmaninov, vários furos abaixo dos Berg, Fauré e Villa-Lobos anteriores. Note-se que o russo, que viveu basicamente do seu pianismo após ter se fixado no ocidente, depois da Revolução de 1917, tinha uma agenda estética neorromântica declarada - e usou seu talento como pianista para sobreviver. Afinal, a essência do recital de piano inventado por Liszt na virada dos anos 1830/40 é mesmo esta: combinar o frenesi da técnica demoníaca com música que valha a pena. Por isso encanta, há quase dois séculos, platéias de todos os gostos.
Crítica: João Marcos Coelho
Avaliação: Ótimo