A Cabeça, do mineiro Luiz Vilela, exige que se volte, pelo menos, a citar um traço característico do autor, que é a força dos diálogos na condução das narrativas. Os diálogos de Vilela são rápidos e limpos de excessos, capazes de sintetizar contextos pela brevidade e silêncio. Um exemplo concreto: em Más Notícias, ao final de uma campanha eleitoral, uma caminhão de bóias-frias tomba, colocando em risco a candidatura de seu proprietário. Discutindo o que fazer, mulher, correligionários e candidatos se responsabilizam uns aos outros e procuram soluções: "´Eles já estão sabendo?´, Maca me pergunta. ´Eles? ...´ ´O pessoal de lá.´ ´Com certeza.´ " De fala em fala, os contextos vão se formando, sem muito espaço para entrechos que não sejam também ações, físicas ou mentais. Mas que situações Vilela leva à literatura? De onde vêm as tensões que originam seus diálogos e suas questões? O primeiro conto, Mosca Morta, apenas insinua um dos temas centrais do livro: a tensão sexual. Há uma oposição entre dois conterrâneos que se encontram num bar depois de um longo tempo. Um estraga o prazer do outro, com recordações impertinentes que decorrem de sua simples presença. De forma mais explícita, o sexo domina os contos Calor, Suzy e Freiras em Férias. Nos dois primeiros, no fetiche não-realizado de homens mais velhos por meninas adolescentes; no último, na transgressão religiosa. É possível ainda perceber uma segunda grande categoria: os contos de tensão social: Luxo, por exemplo, coloca duas pessoas discutindo o tamanho de um banheiro de empregadas num apartamento. Além da ideologia que exclui os interesses da futura empregada quando o assunto é conforto, há ainda a natural oposição entre chefe e subordinado, entre os desejos e posições dos patrões e dos funcionários - assim como a empregada não tem espaço, o empregado, exercendo uma função intelectual, é também submetido a um constrangimento: o de planejar o desconforto alheio. Há, portanto, uma profundidade especial neste conto, em que engenheiro (arquiteto?) assalariado e futura empregada se aproximam, ainda que o primeiro esteja apenas representando um problema futuro para a segunda, ainda apenas uma abstração. Também fazem parte desse grupo Más Notícias, Rua da Amargura (em que os irmãos discutem sobre o direito e a necessidade de extrair os dentes de ouro do pai em coma) e A Cabeça, que dá nome ao livro e que tem como personagem central uma cabeça arrancada do corpo. Por fim, há um conto sobre a impaciência de um homem com crianças, Catástrofe. Como costuma ocorrer com os bons contistas, é o cotidiano que cria o cenário dos textos de Vilela, um cotidiano sobretudo urbano e ligado ao imaginário da classe média. Mas um cotidiano também contaminado pela fricção social, expressa pela violência do caminhão que vira e pela cabeça cortada no meio da rua. Vilela, assim, mostra-se um contista absolutamente contemporâneo, revelador de recalques, temores e truculências que assustam e paralisam o nosso tempo - um tempo que parece não ter passado e que não se permite nenhum futuro. Como, então, ler contos mais antigos de Luiz Vilela? Há uma oportunidade na praça, a reedição de Contos, lançado originalmente pela Lê, uma editora de Belo Horizonte, em 1986. O primeiro conto, Por Toda a Vida, logo de cara mostra que os tempos são outros. A monotonia dos casamentos pode até continuar a ser uma verdade que oprime a muitos, bem como pode continuar a existir o discurso da mãe da noiva - de que o rapaz é pobre e "que sem dinheiro ninguém vale nada hoje". O que se estranha é que isso faça parte de um discurso literário. O conto, na verdade, parece ter envelhecido: até porque a situação econômica do País e a instabilidade do mundo cresceram num tal ritmo que mesmo a "riqueza", para uma moça pobre, está num patamar muito alto, distante demais do casamento "romântico" para que aquele diálogo entre mãe e filha soe impossível. Em Avô, a tensão é a da apresentação, a uma criança, da morte. É um conto relacionado à memória, à forma como uma criança encara o fim da vida de um parente que lhe dispensa carinhos, mas também provoca repulsa. Um texto que idealiza menos a infância, até porque não pretende usá-la como instrumento de resistência. O melhor conto dessa coletânea - e que não perdeu nenhuma força com o passar do tempo - é, sem dúvida, Bichinho Engraçado. Nele, durante uma pescaria, o protagonista "pesca" um cágado. Incapaz de matá-lo como fazem seus amigos, passando um canivete no pescoço do animal ("não era só um meio de se livrar deles; era também uma espécie de vingança, por causa das iscas que os cágados comiam"), ele decide levá-lo para casa. Encontra, então, a oposição da mulher e tenta de várias formas "adaptá-lo" à vida urbana. Primeiro, em casa, colocando-o para nadar no tanque, escondido da companheira. Depois, no lago da praça. Até que desiste dele. A humanização do animal é tamanha que, se no início, Vilela parece estar falando dos assassinatos banais, no final, lembra o discurso sobre as crianças de rua e os migrantes que não se adaptam às grandes cidades. O conto, assim, transcende em muito seu próprio enredo, portanto pronta para transcender o tempo. A Cabeça. Cosac & Naify, 134 páginas, R$ 18. Contos. Editora Nankin, 80 páginas, R$18,50.Coletâneas de contos de Luiz Vilela.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.