por Giovanni Rolla
Introdução
Talvez você nunca tenha se perguntado o que é conhecimento, ou como sabemos que não estamos sonhando ou como é possível saber se eu e você vemos o verde da mesma maneira ou se vemos cores completamente diferentes que apenas chamamos pelo mesmo nome. Essas são algumas das perguntas da epistemologia, a disciplina que estuda a natureza do conhecimento, e trataremos delas (e de muitas outras) no decorrer deste livro. Mesmo que você jamais tenha pensado sobre essas coisas - o que, eu imagino, não é lá muito plausível -, você certamente já usou o conceito de conhecimento no seu dia-a-dia. Não apenas isso, mas você já deve ter se perguntado "mas como que você sabe isso?" ou ter discutido com alguém sobre quem realmente conhece um coisa ou outra. Com efeito, todos os conceitos dos quais trataremos aqui - conhecimento, justificação, dúvida, percepção, autoconsciência - são velhos conhecidos seus, e o nosso trabalho será examiná-los de uma nova perspectiva e, a partir disso, conquistar alguma clareza sobre como esses conceitos funcionam. Essa é a beleza da epistemologia tal como praticada hoje, pois, apesar do rigor técnico e da linguagem própria que são característicos de uma disciplina bem desenvolvida, a sua ancoragem no senso-comum e no uso cotidiano dos conceitos permite que qualquer um com interesse e disposição consiga entender a natureza dos debates epistemológicos.
O que é, afinal de contas, a epistemologia? Uma definição provisória, e bastante difundida, é "a disciplina que estuda o conhecimento". Isso é verdade, mas devemos fazer algumas ressalvas, pois outras disciplinas também estudam o conhecimento. A pedagogia, por exemplo, estuda (ou deveria estudar) como adquirimos conhecimento, e as ciências cognitivas estudam os processos que acontecem no nosso cérebro (e às vezes no resto do corpo) enquanto adquirimos conhecimento. Já a sociologia estuda, entre outras coisas, como o conhecimento afeta as nossas relações sociais. Essas disciplinas estudam o conhecimento empiricamente, o que quer dizer, de modo um tanto grosseiro, que elas partem de experiências e coletam dados para suportar essa ou aquela hipótese. A epistemologia é tradicionalmente distinta dessas e das demais disciplinas que estudam o conhecimento de modo empírico - pois a epistemologia está preocupada com o conceito de conhecimento. Isso quer dizer que a investigação epistemológica está primariamente preocupada em como interpretar esse conceito e os seus elementos, o que frequentemente é entendido como a tarefa de explicar o que é possuir conhecimento. Possuir conhecimento é, em um sentido amplo, estar em um estado mental, que para a epistemologia é caracterizado de uma maneira geral: não é o estado mental de conhecer tal como manifestado pelos povos europeus ou exibido Joãozinho neste instante, é o estado mental de conhecer - ponto. Não importa se é o meu conhecimento, o seu, o de sua amiga, nem quando e onde esse conhecimento foi adquirido. A epistemologia estuda a natureza do conceito de conhecimento de uma perspectiva absolutamente geral.
Essa diferença entre a epistemologia e as ciências que estudam o conhecimento empiricamente ajuda a demarcar a tarefa tipicamente filosófica da epistemologia, mas ela não precisa ser vista como um traço definidor da disciplina. Ademais, talvez seja injusto dizer que nenhuma informação empírica é relevante para o nosso estudo epistemológico, pois, como vamos ver na sequência deste livro, parte essencial da prática epistemológica consiste em testar teorias a partir de contraexemplos, isto é, situações imaginadas que avaliam a adequação de uma teoria. É claro, porque essas situações são imaginadas, elas não são (necessariamente, ao menos) reais - mas elas claramente servem um propósito muito parecido ao de experiências empíricas no teste de teorias científicas. É por isso que quando eu falo de "epistemologia analítica", eu não quero excluir de todo a epistemologia naturalizada, que reconhece uma continuídade entre a filosofia e as demais ciências.
Este livro é estruturado da seguinte maneira. No primeiro capítulo, examinamos em detalhes a distinção entre os diferentes tipos de conhecimento: o saber que, o conhecer e o saber fazer. O modo como usamos esses conceitos no dia-a-dia sugere que há diferenças significativas entre eles, mas muitos têm buscado aproximações de um ou outro tipo. No segundo capítulo (e no resto do livro, salvo em momentos pontuais), vamos focar no saber que. A análise das condições de uso do conceito de conhecimento leva-nos naturalmente à ideia de que conhecimento equivale a crença verdadeira justificada, uma ideia que vigorou incontestada desde Platão até Edmund Gettier, que a colocou definitivamente por terra na segunda metade do século XX. No terceiro capítulo, vamos examinar a prova de Gettier e mapear as reações a essa prova na epistemologia contemporânea. No quarto capítulo, apresentamos o problema cético - segundo o qual não possuímos conhecimento algum - e algumas maneiras de evitá-lo, como a rejeição de um dos princípios em que o argumento cético é baseado e a tentativa contextualista de negar a legitimidade do problema cético no contexto de dia-a-dia. Apresentamos uma estratégia de resolução do problema cético no quinto capítulo ao tratarmos de teorias da percepção. No sexto capítulo, tratamos do problema do autoconhecimento e consideramos se a sua natureza é perceptual (ou quase-perceptual) ou de algum outro tipo, e também apresentamos o problema do conhecimento das outras mentes como derivado da suposição de que existe um acesso privilegiado aos nossos conteúdos mentais.
Giovanni Rolla é professor de Filosofia na Universidade Federal do Piauí, bacharel, mestre e doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.É autor do livro Epistemologia : uma introdução elementar, publicado pela editoraFi. Baixe o livrogratuitamente no link.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.