Explicar o passado, sem prever o futuro

Estudo do canadense evita usar a história para fazer previsões

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Por Paulo Sérgio Pinheiro
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A violência nos interpela a todo momento. Assaltos, homicídios, sequestros, etc. dominam o cotidiano dos cidadãos em todo o mundo. Na mídia eletrônica e nas redes sociais imagens de guerra no Afeganistão ou na Síria irrompem em tempo real. Esse cerco nos obriga a entender o passado, analisar o presente, muita vez com a tentação de prever o futuro.Talvez não tenha havido, na infinidade de estudos desde o século 19 que tentaram dar conta do tema, um esforço tão monumental de entendê-lo em todas as suas manifestações como Os Anjos Bons da Nossa Natureza - Por Que a Violência Diminuiu, de Steven Pinker, professor de psicologia da Universidade Harvard, quanto mais não fora pela extensão do texto: 802 páginas na edição em inglês, 1.048 em português. O problema central do estudo é demonstrar a redução da violência em diferentes escalas - na família, nos bairros, entre tribos e facções armadas e entre nações e Estados. Mas não esperem os leitores previsões sobre o futuro: Pinker deixa claro que o objetivo do livro é explicar os fatos no passado, não fazendo augúrios e hipóteses sobre o futuro.Seu foco abrange desde a pré-história humana até o século 21, mas a ênfase está nos séculos 19 e 20, com um formidável aparato de pesquisas nas mais diversas ciências humanas, não prevalecendo, apesar da profunda expertise de Pinker na área, a psicologia. O estudo é magistralmente fundamentando em análises de história, antropologia, sociologia, ciência política e economia.De saída, deve ser dito que, apesar do tamanho e da profusão de teorias e análises tratadas, o texto de Pinker tanto em inglês como na tradução em português é altamente acessível, tentando responder com uma linguagem às vezes irreverente às ansiedades comuns no cotidiano em relação à violência. Ao tratar do bullying de crianças não hesita em reproduzir os quadrinhos de Calvin e Hobbes, em que o stupendous Calvin é arremessado por um colega contra um armário de aço num vestiário. Para mostrar a violência cotidiana no fisiculturismo do atleta Charles Atlas dos anos 1940, vale-se de outra tira de quadrinhos.Sua abordagem é evidence based, toda baseada em evidência empírica, no sentido de procurar explicar por que e como a violência emergiu ou declinou. Logo, não deixa de ser intrigante para um cientista e ainda mais ateu, como se confessa, que seu livro traga a figura dos anjos - na capa da edição em inglês O Sacrifício de Isaac, por Rembrandt, 1635, o quadro original (que está no Hermitage, em Moscou) foi curiosamente invertido. Estaria a situação de violência no mundo tão desesperada que, como último recurso, temos de apelar para aqueles mensageiros de Deus para proteger os seres humanos?Justo reconhecer que Pinker está em muito boa companhia, a de Walter Benjamin, que numa de suas teses Sobre o Conceito de História recorre à imagem do Anjo da História com "o rosto voltado para o passado. Onde nós percebemos uma cadeia de eventos, ele vê uma catástrofe única, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés. O anjo gostaria de ficar, despertar os mortos, e refazer o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do Paraíso impelindo-o irresistivelmente para o futuro". Diante daquele quadro aterrorizante, como o Anjo, estaríamos inclinados diante da violência a "uma dor profunda inconsolável, que nada poderia apaziguar" que nos imobiliza. Pinker quer ultrapassar essa visão negativa, imobilista e tenta compreender que das ruínas do problema sempre têm emergido possibilidades de pacificação, ainda que realisticamente não considere "o declínio da violência como uma força irrefreável que impele para o progresso e nos arrasta em direção a um ponto ômega da paz".Na verdade, o estudo se situa num campo de forças em que se desenvolvem tendências tratando dos sucessivos avanços dentro de um processo de pacificação que acompanhou a formação dos Estados, fazendo com que o lugar mais seguro na história humana - a Europa Ocidental do século 21 - tenha uma taxa de homicídio em média de um por 100 mil habitantes (somente para efeito de perspectiva, no Brasil temos na mesma proporção 24 homicídios).Para essa pacificação ter ocorrido, entre outras muitas interpretações discutidas, contribuiu o que foi chamado pelo sociólogo Norberto Elias de "processo civilizador", no qual, por um lado, os hábitos de refinamento e autocontrole nas sociedades - a construção de uma verdadeira segunda natureza - se conjugou com a centralização do controle e o monopólio da violência física do Estado depois de séculos de anarquia na Europa: "Assim que o Leviatã (o Estado para Hobbes) assumiu o comando, as regras do jogo mudaram" (pág. 123). Mas a fonte do efeito pacificador do Estado não é apenas seu poder coercivo bruto; inclui também a confiança e esperança que ele desperta na população pela possibilidade de atender às suas reivindicações.Houve, contudo, campos nos quais o processo civilizador nunca penetrou completamente: os estratos mais baixos da escala socioeconômica e os territórios inóspitos ou inacessíveis do globo. E outros dois em que esse processo deu marcha à ré: o mundo em desenvolvimento, isto é, o nosso (aliás, o menos examinado no estudo), e a taxa de homicídios nos anos 1960 (tratada fundamentalmente nos países do Hemisfério Norte). Entre as tendências positivas, estão a fase de transição posterior à mortandade e aos massacres ocorridos na 2.ª Guerra Mundial e a promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Pinker, a propósito, enfatiza o que chama de "revolução humanitária", com o repúdio a formas de tratamento cruel como a tortura e a repulsa crescente à pena de morte.No interior daquele campo de forças, em meio a essas transições positivas, operam cinco "demônios interiores" - a violência predatória, a dominância, o sadismo, a ideologia e a vingança -, refutada a teoria segundo a qual os seres humanos nutrem um impulso de agressão inato. Enfrentando os demônios estão cinco "anjos" bons, basicamente motivações que podem orientar os humanos para longe da violência, como o autocontrole e o senso moral. Completando o quadro, Pinker aponta cinco forças históricas, exógenas, como o aumento do respeito e interesse pelos valores das mulheres, uma maior aplicação da racionalidade (que ele chama de "escada rolante da razão"), que favorecem a pacificação e pautaram os declínios da violência.Nesse campo de forças, inegavelmente há progresso muita vez de forma não planejada. O poder supremo do Estado Leviatã foi corroído por organismos internacionais e desafiado por inúmeros mecanismos, enfraquecendo o escudo do sacrossanto princípio da soberania nacional para proteger violações dos direitos humanos, resultando em mudanças decisivas. Através da "revolução dos direitos", algumas das vítimas - trabalhadores, mulheres, crianças (Pinker analisa longamente a violência contra elas), LGBT, povos indígenas, migrantes, portadores de necessidades especiais, pessoas de ascendência africana, os palestinos - tiveram seus direitos reconhecidos, embora sigam longe ainda de estarem totalmente protegidos.Entretanto, apesar de no título a tese central do livro estar escancarada, afinal, "a violência vem diminuindo desde o passado distante, e hoje podemos estar vivendo na era mais pacífica que a nossa espécie já atravessou", nem sempre essa tendência prevaleceu. E graças à visão dinâmica do problema, tanto no tempo como nas suas mais diversificadas expressões, o estudo nunca perde o pé na realidade concreta, jamais proferindo ou prevendo como possível o seu fim.Como no campo da violência sempre operam forças contraditórias, continua a pairar sempre a ameaça de novos conflitos mais destrutivos ainda. É o caso da war of attrition, guerra de desgaste, na qual nenhum dos contendores aceita a derrota - como estamos vendo hoje na Síria e em territórios intocados pela diminuição do problema.Não há como refutar que o declínio da violência no mundo é o acontecimento mais importante para a nossa espécie. Pinker - por não perder a consciência da realidade por trás dos números - em nenhum momento abandona a indignação diante da história desse grande mal humano. Apesar de um aparente otimismo em suas conclusões, jamais se arrisca a afirmar que os processos que contribuíram para o declínio da violência poderão continuar a ser efetivos no futuro. No horizonte da América Andina e Central, onde se concentram as maiores taxas de homicídio do planeta, as conclusões de Pinker poderão ser lidas até com certo ceticismo. Não importa. Os Anjos Bons da Nossa Natureza é uma contribuição monumental e incontornável para entendermos o tema no tempo presente e os processos que levaram a uma maior pacificação das sociedades. E também para compreendermos por que na história nem sempre os demônios prevalecem contra os anjos bons. Felizmente.PAULO SÉRGIO PINHEIRO, PESQUISADOR ASSOCIADO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA VIOLÊNCIA DA USP, É ATUALMENTE PRESIDENTE DA COMISSÃO INDEPENDENTE INTERNACIONAL DA ONU DE INVESTIGAÇÃO SOBRE A SÍRIA E COORDENADOR DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE

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