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Finados entre a literatura e a lei

Por vezes, o talento narrativo dos mortos causa turbulência entre os vivos

colunista convidado
Foto do author Leandro Karnal
Por Leandro Karnal

Os que partiram despertam a imaginação dos que permanecem visíveis. Os adeptos do positivismo diziam que os mortos governavam os vivos. Na literatura, finados são personagens inspiradoras.

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Um dos melhores livros de toda a minha vida foi Incidente em Antares, de Erico Verissimo. Se você nunca leu, não ouse terminar 2022 sem fazê-lo. Os mortos que retornam para questionar vivos, no livro, são um exercício de imaginação poderoso. Livres, sem temer nada, eles trazem denúncias graves para inquietar os que ainda não partiram.

Erico não foi pioneiro no uso de defuntos-personagens. Na verdade, talvez seja o recurso mais usado por autores. Brás Cubas toma de grande liberdade como defunto-autor nas suas memórias póstumas. Machado também não inaugurou o recurso. A Divina Comédia de Dante só tem, na prática, um ser vivo. Todos os outros são almas felizes ou condenadas. O poeta italiano também não criou o recurso. Clássicos como a Eneida, de Virgílio, apresentam conversas com mortos.

Cássio Scapin protagonizou a peça 'Memórias Póstumas de Brás Cubas' Foto: João Caldas


Volto ao mundo contemporâneo. Mário Quintana recomendava que não se deixasse um defunto sozinho. Uma vez, ele estava em um velório e saiu para um café. “Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! E só Deus sabe o constrangimento com que nos vimos, os nossos míseros gestos de desculpa e os sorrisos amarelos que trocamos…” Aqui o conselho do poeta: ao retornar a um ambiente em que há um morto, devemos tossir discretamente como um aviso educado. Há uma etiqueta mínima para lidar com finados.

Por vezes, o talento narrativo dos mortos causa turbulências entre os vivos. Quando o jovem médium Chico Xavier lançou seu Parnaso de Além-Túmulo (1932), ele alegou que os poemas ali contidos eram inspirados pelos falecidos Olavo Bilac, Cruz e Sousa, Casimiro de Abreu, Castro Alves e outros nomes consagrados. As opiniões ficaram bastante divididas sobre a obra, mas os herdeiros de Humberto de Campos (com poemas incluídos em edição posterior) ingressaram com ação declaratória contra o conhecido líder espírita e a Federação Espírita (detentora dos direitos autorais). Se os poemas eram do falecido, os direitos pertenciam à família por um prazo legal determinado. Lição importante de Erico Verissimo e de Machado de Assis: é melhor invocar defuntos anônimos do além. Finados conhecidos possuem herdeiros vivos e zelosos dos seus direitos. Esperança no além e advogados no aquém: é uma boa e justa medida.



* LEANDRO KARNAL É HISTORIADOR, ESCRITOR, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, AUTOR DE ‘A CORAGEM DA ESPERANÇA’, ENTRE OUTROS

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