Gianni Ratto é um antídoto para a catatonia mental e o encurtamento progressivo das idéias. Seus 85 anos incluem 60 vividos de teatro, arte, filosofia. Ele tinha dirigido e encenado mais de cem peças quando, há quase meio século, decidiu trocar a Europa pelo Brasil. Teatro lírico, musical, dança e revista, o genovês trazia na bagagem a convivência com mitos da dramaturgia e da música européia como Stravinski, Karajan, Maria Callas. E experiência ganha nos teatros que ajudou a fundar ou dirigir, como o Stabile de Gênova e Florença, e o Piccolo e o Scala de Milão. Seus trabalhos no Brasil fazem parte do imaginário cultural -- desde o primeiro, um ano depois de chegar, em 1955: A Moratória, de Jorge Andrade, com Sergio Britto e Fernanda Montenegro. Entre 1955 e hoje, assinou direção e cenografia de 164 espetáculos. Como A Gota d´Água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, com Bibi Ferreira. Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come, de Oduvaldo Viana Filho e Ferreira Gullar, deslanchou uma nova dramaturgia. Montou tantas peças inesquecíveis no grupo Opinião que hoje encarna a própria história do teatro brasileiro. Há dois anos, sua última cenografia - O Acidente, de Ariela Bosco - trazia síntese e simplificação. "Era um cenário onde havia três paredes em forma de triângulo, o público encaixava-se dentro desses três pontos e era tudo. Cenografia para mim, hoje, não significa nada." Premiado 29 vezes, Ratto acaba de ganhar pela segunda vez a Bolsa Vitae para escrever um livro sobre o ofício do ator. Chama-se Hipocritando - Folhas Soltas, a sair pela Senac em julho. Enquanto isso, também finaliza Crônicas Improváveis, livro que reúne 12 contos do realismo fantástico. Vale também a pena ler a autobiografia A Mochila do Mascate, lançada pela Hucitec há cinco anos. Ao contar sua história pessoal, Ratto deixa um documento precioso sobre nosso teatro. Ao relembrar com pândega e dor a infância ao lado da mãe e do pai que nunca lhe deu o nome, os anos de guerra, os amigos Adolfo Celi, Fernanda Montenegro, Flávio Rangel, Maria della Costa, Vianinha, ele dá uma aula de arte e vida. "Recusei o fácil e o truque", escreve. São dele também as frases: "O teatro é um lugar onde nada existe e tudo pode acontecer"; "Hoje - refiro-me sobretudo ao Brasil - não existe uma arquitetura teatral"; "A angústia por um anseio de reconhecimento que se sobrepõe a uma busca mais profunda é responsável pelas atitudes mesquinhas dos ´grandes atores´. Nesses casos, eu odeio o ator"; "Às vezes me pergunto, principalmente quando o ator é ruim, o que leva um homem a querer ser ator: ambição, desejo de aplauso, vocação para a fogueira das vaidades... Há muitos motivos, mas o único que quase nunca encontro é a vocação para servir a palavra, a poesia, o pensamento".