“Então, agora vai sair.” Todos estavam felizes, esperavam há 13 anos o início das obras que deveriam colocar a cidade no mapa. Mudaria a vida na cidade, no Estado, no Brasil, talvez no mundo. Poderia restaurar as esperanças de todos, agências internacionais restaurariam nossos índices de credibilidade ao máximo
“A transição acabou. Vão começar a construir o aeroporto”, anunciavam todos, eufóricos. O prefeito ofereceu um chopinho pago pelas empreiteiras. Toda a população bebeu por dias e dias, a bebida jorrava dos barris colocados em cada esquina. Churrasco intermunicipal, vieram convidados de todas as cidades, afinal - diziam - que o filho do presidente era o sócio majoritário do frigorífico que forneceu a carne gratuitamente. Filho de qual presidente? Como saber qual deles governava? Havia o eleito, havia o ex que palpitava, e o segundo ex que orientava, e o terceiro ex que voava em jatinhos como um desesperado, em missão especiais e assim por diante.
“Nosso aeroporto, nossa vida”, bradavam os governantes. Pátria aeroportuária, bradavam outros. Eram tantos os que mandavam no palácio, que não se sabia mesmo quem governava. Ministros - e nesta altura os ministérios tinham chegado a 970 - mandavam. O presidente da Câmara mandava, o presidente do Senado também, o presidente do STF dava ordens, o presidente da Advocacia Geral da União, os pastores das religiões que ofereciam Deus e exorcizavam o Diabo, o vice-presidente mandava. O palácio que recebera do povo o apelido de Do Crepúsculo era uma balbúrdia e uma fofocagem só.
O aeroporto ligaria o Brasil a todos os países do mundo. Aos conhecidos, aos desconhecidos, aos que seriam descobertos, aos que seriam criados, inventados. Haveria voos intergalácticos, todas as companhias de aviação entravam nas licitações, pagavam propinas vultosas, lobistas circulavam clandestinamente por todos os lados. Transporte e carga. As colheitas seriam despachadas dali, na maior infraestrutura já erguida no planeta. O país abasteceria o mundo.
Há 13 anos, o aeroporto fora aprovado, veio a escolha das construtoras. A obra seria fatiada e entregue a muitas, era algo monumental, equivaleria a 600 das arenas feitas para a Copa. Pronta, seria vista da lua. Cada partido indicou uma construtora. Eram 89 partidos. Cada ministro indicou, cada deputado, chefe de gabinete, assessor, lobista, parente, cada puxa-saco, doleiro, traficante, cada amante, banqueiro, churrasqueiro. Os lucros para o país seriam assombrosos.
Construção iniciada, grandes volumes de terra foram movimentados, milhares de caminhões, caçambas, tratores, escavadeiras, o que se podia imaginar em veículos pesados se agitavam num formigueiro monstruoso, provocando uma poeira vermelha que obstruiu o céu, encheu os pulmões da população de cem cidades vizinhas. Os ambientalistas conseguiram por 27 sete vezes interromper a obra. Perderam todas na justiça. Os empreiteiros pediam reajustes, novos aditivos, modificavam-se os projetos, havia centenas deles, os mestres de obras estavam malucos, vários se suicidaram, outros foram internados, alguns lobotomizados, outros aposentados pelo salário mínimo que não tinha aumento há 50 anos. A imprensa internacional se ocupou, o The Economist exultava.
A obra estava por terminar. O governo (não me perguntem qual, nem mesmo as excelente historiadoras Lilia Schwarcz e Heloisa Starling sabiam e olhem que pesquisavam e pesquisavam) anunciou que seria inaugurada e presidentes das nações amigas chegaram em seus jatos de luxo. Nunca se viu tal cerimônia em toda a história do Brasil. Ninguém foi chamado a cortar a fita, porque naquele momento se descobriu que o aeroporto não tinha porta de entrada. Nenhuma. Nem uma janelinha, portinha, portinhola, porteira, nem um orifício naquele imenso e lindíssimo muro de concreto decorado com cerâmica terragrês. A pergunta que se esparramou foi: “O que tem lá dentro? Como se entra? Como se sai? Como se embarca? Como se desembarca?”. “Abrir portas”, disse o assessor do futuro governo. Esta será a meta das metas, o dobro das metas, porque somos todos sapiens. Faremos licitações para abrir portas, mas isto ainda vai demorar, quem sabe na próxima legislatura.
Mesmo assim, inauguraram e é uma obra da qual nós, brasileiros, nos orgulhamos, não existe nenhuma outra igual na Terra, na Galáxia, nos Universos Paralelos. Passadas muitas décadas, um jovem, que era bebê quando inauguraram a obra, perguntou:
“O que seria aqui, meu avô?”.
“Pelo que soube, correu na época, ninguém garante, seria um mega-aeroporto.”
“Como aeroporto, pai? E por que não construíram as pistas?”
“É o único no mundo, meu neto. Único. Está no Guinness há muito. Eu me orgulho deste nosso país original.”
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