“Será isso a morte?”
O último verso do poema de Joseph von Eichendorff, No Pôr do Sol, já era simples e violento antes mesmo que Richard Strauss o transformasse em música. A canção encerra as Quatro Últimas Canções do compositor alemão, suas obras derradeiras, escritas pouco antes de sua morte, em setembro de 1949, aos 85 anos.
A reunião delas em um ciclo não partiu de Strauss, que as escreveu de forma independente, mas, sim, de seu amigo Ernst Roth, que, em 1950, as reuniu e as fez estrear em um concerto em Londres com a soprano Kirsten Flagstad e o maestro Wilhelm Fürtwangler.
Mas que eles estejam juntas faz todo sentido.

Além de pertencerem ao mesmo gênero de canções e de serem as últimas obras do escritor, elas giram em torno de uma mesma temática: vida, abandono, despedida, morte. E o fazem de uma maneira desconcertante. O drama é transparente e o canto, voluptuoso e etéreo, quase sensual no modo como faz com que as palavras flutuem sobre a orquestra, imensa em tamanho, mas de articulação quase mozartiana.
Leia também
No pôr do sol, Im Abendrot, foi a primeira das quatro a ser escrita, ainda que, no ciclo, seja a última a ser cantada. E nem poderia ser diferente. Mesmo que haja alguma divergência sobre a ordem em que elas devem aparecer – e aqui não há a intenção do compositor para guiar a decisão –, ela se parece, de cima a baixo, como uma conclusão. E não por acaso, ainda que não tenha sido assim na estreia, convencionou-se deixá-la para o final e abrir as Quatro Últimas Canções com Primavera, Setembro e Indo Dormir (as três escritas a partir de poemas de um jovem Herman Hesse cuja obra Strauss acabara de conhecer).
A Primavera surge com seus perfumes e pássaros, e com a visão da amada inundada pela luz. “Você me vê uma vez mais”, o agudo quase nos leva a outro domínio, etéreo, incorpóreo, da existência. Mas o olhar que a mulher dirige ao poeta o traz volta à terra, e seu corpo treme enquanto a observa.
A beleza da introdução de Setembro é enganosa; então, parece que não é; e, depois, já não sabemos. O verão, diz o poeta, estremece à medida em que encontra seu fim. Mas também sorri, surpreso e fraco, no sonho de um jardim moribundo. A música começa a se demorar nas palavras. “Jardim”. A melodia do início retorna, para logo se desfazer. “Lentamente”. A voz se desfaz com ela. E o verão finalmente fecha os olhos, cansados. “Olhos”.
Indo Dormir começa grave, um mundo escuro em que aos poucos alguma luz se insinua. O corpo procura a noite. “Noite”. No canto, ela é breve, áspera. Mas a mente quer, precisa, se livrar dos pensamentos; os sentidos anseiam por descanso. As trompas abrem espaço para o solo do violino, as outras cordas ao fundo, em respeito. É uma das melodias mais bonitas escritas por Strauss. “E a minha alma...” – o canto retorna, em um crescendo. A voz flutua como a existência que busca a profundidade da noite.
As cordas se pronunciam, intensas, não fortes, no início de Ao pôr do sol. A melodia se desenha como se não tivesse fim, até que se perde em meio à orquestra. Mas ela persiste, está ali, não está – e é enfim abraçada pelo restante da orquestra. Tudo é melancolia, dor comovente e bela, enquanto o poeta relembra a jornada pela adversidade e pela alegria. Para em busca de descanso em uma “terra silenciosa”. O céu escurece, retorna a noite, as cotovias cantam, quase brigando com as palavras. E se nos perdermos na solidão? Há medo, receio. E a paz do silêncio nas profundezas das cores do pôr do sol. O corpo está cansado das viagens. A música se insinua como um caminho escuro, sombrio. E resta ao poeta a última dúvida a que tem direito:
“Será isso... – ele faz uma pausa – ...a morte?”
O crítico Lauro Machado Coelho, straussiano fervoroso e autor de livro de referência sobre suas óperas (publicado pela Perspectiva), escreveu que as canções são “reflexões sem qualquer amargura sobre o final da vida e a aceitação tranquila do fim”. Outro crítico, o alemão Herbert Glass, vê as coisas de forma diferente, à luz do momento vivido pelo compositor. Com o fim da 2ª Guerra, Strauss cria, nas canções, obras “impregnadas de uma sensação do que foi e nunca mais será”. E não há como fazer isso sem profunda melancolia.
Minha resposta sempre esteve na interpretação que a soprano Jessye Norman deu às canções, acompanhada por Kurt Masur e a Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, nos anos 1980, um desses momentos mágicos da história da música gravada.
Os andamentos são lentos, como nunca voltei a ouvir. E há a sequência final de Im Abendrot. Será isso a morte? A dúvida nunca soou tão real, e por isso mesmo tão assustadora. E a orquestra leva a canção ao fim como se sobre ela se fechasse a escuridão. As cotovias retornam, mas o verão está já morto, assim como não existe mais luz a inundar a visão da amada. O tremor do corpo, agora, só pode ser de terror.
Em 2001, perguntei a Jessye Norman durante uma entrevista se havia sido essa a sua intenção ao gravar a peça. “É exatamente o contrário”, ela respondeu, sem a menor hesitação. Aquele final é um caminhar resignado, de aceitação. Será isso a morte? “Enquanto vou em direção a ela, eu tento compreendê-la e aceitá-la como ponto de chegada de uma existência plena. É monumental, sim, mas também delicado.”
Norman sabe muito melhor do que eu o que fez naquela gravação.
Mas que não tem paz nenhuma ali, não tem. Mesmo.
A Osesp apresenta as Quatro Últimas Canções de Strauss nos dias 14, 15 e 16 de março, na abertura de sua temporada na Sala São Paulo. A solista será a soprano sul-africana Masabane Cecilia Rangwanasha e a regência é de Thierry Fischer.