Em 1866, um diplomata do Império Turco Otomano encomendou ao pintor realista francês Gustav Courbet uma pintura erótica. O resultado foi o obsceno quadro A Origem do Mundo: nele se vê uma mulher nua, deitada de costas numa cama, com o rosto e parte dos seios cobertos por um lençol; em primeiro plano, as coxas roliças abertas e a genitália à mostra. Conta-se que tanto o primeiro dono – o turco Khalil Bey –, quanto o último – Jacques Lacan – mantiveram o quadro velado em suas casas: Khalil o ocultou no banheiro, sob uma cortina verde; Lacan, na sala de sua casa de campo, sob uma pintura do cunhado André Masson. Só com a morte da viúva do psicanalista francês, já nos anos 1990, é que o quadro foi doado pela família ao Museu D’Orsay, em Paris, onde se encontra até hoje aberto à visitação.
É justamente aí que começa o livro homônimo, do também diplomata Jorge Edwards, publicado em 1996. A contemplação do quadro pelo septuagenário médico chileno Patricio Illanes, ao lado de sua companheira Silvia, com quem vive há mais de 3 anos, suscita-lhe uma inquietante associação: aquela genitália exposta no quadro é semelhante à de sua mulher e aquele tipo de imagem é própria do amigo Felipe Díaz – pródigo em conquistas amorosas e fotografias das amantes. É o suficiente para desencadear nele uma mortificante crise de ciúmes que durará sete dias, o tempo exato do romance. Tanto mais mortificante na medida em que o protagonista não a verbaliza à própria mulher, enquanto a alimenta com provas e dados colhidos entre seus conhecidos e supostos implicados.
É uma narrativa ágil e que tem o poder de capturar o leitor e mantê-lo cativo até a linha final. Edwards é detentor de uma prosa econômica e retrata muito bem Patricio Illanes e Felipe Díaz como dois ex-comunistas sul-americanos de alta classe, nos anos exatamente seguintes à queda do Muro de Berlim, num prazeroso exílio francês. Um dos grandes achados no romance é a construção do meticuloso e equilibrado médico, que se alimenta de maneira saudável, faz a sesta todos os dias e limita-se a beber limonada amarga, mesmo na companhia dos amigos beberrões. Pois é este mesmo personagem que passa a agir como uma sorte de Sherlock Holmes, tanto para deduzir a morte do amigo quanto para revelar a si mesmo a suposta aventura sexual da esposa. Para tanto colhe depoimentos de conhecidos, degradando-se mais a cada encontro e a cada diálogo; buscando simplesmente confirmar sua autoproclamada condição de corno.
Embora leitor e admirador de Machado de Assis – publicou em 2002 um estudo sobre o escritor brasileiro –, Edwards não se contenta com a ambiguidade da trama e com a ruína psíquica de seu protagonista. O romance quase em sua totalidade é narrado pelo médico, tem, no capítulo final, a voz transferida a Silvia. Com isso, desfaz-se por fim qualquer dúvida quanto à suposta traição – muito embora Mario Vargas Llosa, no posfácio à edição brasileira, sustente que há na fala final de Silvia muito de invenção. Não deixa de ser acertada a escolha de Edwards, pois se passa do olhar oblíquo e dissimulado presente em Dom Casmurro a uma explicitude difícil de suportar neste A Origem do Mundo.
O romance, enfim, tematiza o que se pode mostrar e o que se suporta ver, o que se pode dizer e o que se suporta escutar. A escolha do quadro de Courbet para tal fim é certeira, porque a genitália sem véus, desafiadora, sob o provocativo título de A Origem do Mundo, ao mostrar tudo, não desvela nada, e deixa o protagonista atônito. A pergunta, afinal, parece ser ainda a de Freud, que Lacan – detentor do quadro desde os anos 50 por sugestão de seu amigo Bataille – sustentou com sua obra: o que quer uma mulher?
WILSON ALVES-BEZERRA É PROFESSOR DA UFSCAR E AUTOR DE DA CLÍNICA DO DESEJO A SUA ESCRITA (MERCADO DE LETRAS/FAPESP)
A ORIGEM DO MUNDO Autor: Jorge Edwards Tradução: José Rubens Siqueira Editora: Cosac Naify (160 págs., R$ 29,90)