Na era do bronze, a família indo-europeia das línguas expandiu-se. Foi um tronco generoso que passava pela Índia, Irã e Europa. Da mãe original surge o ramo itálico e, deste, o latim. As legiões dos Césares chegaram ao Noroeste da Península Ibérica e geraram folhas belas na região galega. Um botão se inclinou para o Norte de Portugal e, do caos das invasões bárbaras, começa uma flor nova, delicada, única que, séculos depois, chamaríamos de Português. Eis a “última flor do Lácio”, como queria o carioca Bilac. Eis “minha pátria como minha língua” como pensou Fernando Pessoa. A fala lusitana pode acolher frutos como a jabuticaba brasileira ou a leveza da múcua, do majestoso imboeiro africano.
Histórica, viva e cosmopolita: a língua portuguesa é extraordinária. Não é fácil. O Império que flui do Tejo não conseguiu unificá-la. Disseminou-a a esmo e obriga, de tempos em tempos, a acordos ortográficos. Ela corre viva, indiferente a dicionários e gramáticas, exasperando puristas. É uma filha adolescente de D. Dinis que diz ao pai austero: volto para o palácio quando eu desejar... Uma princesa tatuada de cabelo azul e – oh anglicismos e barbarismos – com “piercings”.
Pensem nas dificuldades! A palavra oxítona é... proparoxítona. Para definir termos com força na última sílaba, uso vocábulo com som de tônica na... antepenúltima. Outrora, chamávamos tais palavras de esdrúxulas. Você pode até ter se esquecido do significado do termo, porém, quando ouve esdrúxula, sabe que não é coisa boa... A princesa tatuada brinca conosco. Ela diz que uma única palavra terá plural no meio, como um encrave exótico: quaisquer.

Língua viva, vai perdendo alguns pequenos rebentos. Tudo que existe pode deixar de ser. Ninguém mais se trata em um nosocômio. Se alguém usar “bofé”, parece que incorporou uma gíria gay com erro de acento. Para o enterro de bofé, compareceram “destarte” e “entrementes”, sabendo que a amiga abriu uma cova na qual saltarão em pouco tempo. Monteiro Lobato (Emília no País da Gramática) entrevistou a palavra bofé. Diante da pergunta de Narizinho sobre seu estado de saúde, a velha senhora responde:
“– Mal, muito mal – respondeu a velha. – No tempo de dantes fui moca das mais faceiras e fiz o papel de ADVÉRBIO. Os homens gostavam de empregar-me sempre que queriam dizer Em verdade, Francamente. Mas começaram a aparecer uns advérbios novos, que caíram no gosto das gentes e tomaram o meu lugar. Fui sendo esquecida”. Por fim, a palavra comenta que há termos que já morreram, como hogano, derivado do termo latino “neste ano”. Orai por ele!
Outros enfermos do vate Camões? O pretérito mais-que-perfeito pagará um alto preço pela sua vaidade. Como um ser criado pode estar além da divina perfeição? A mesóclise bateu a cabeça. Ambos passam mal. Choram as musas e chora o presidente Temer. Na vida, da uva ao poder, tudo passa, inclusive trocadilhos infames.
Mário Quintana profetizou que ainda existirão tais engastes nas orações de alguns paraninfos. Em tempos de educação a distância, acelera-se a agonia?
O tempo contrai os termos. Surgem formas (que rufem os tambores para uma palavra estranha): A-P-O-C-O-P-A-D-A-S. Sim, apocopar é contrair. Vossa Mercê vira você e chega a “vc” das mensagens de Zap. Zap é forma apocopada do termo WhatsApp.
“Eu não aceito estas formas com abreviações e figurinhas.” Não se preocupe. Como as palavras, Vossa Mercê também encerrará seu período visível no planeta, e acompanhando o vocábulo hogano, será depositado com honras no solo. Lusófonos rebeldes e conservadores passarão, ambos, pois a língua os excede. Talvez, na sua lápide, entalhe-se lindo epitáfio: “Aqui jazem todes da família Silva”. Esta é a parte que nos cabe deste latifúndio, uma cova grande para teu pouco defunto, como imaginou João Cabral de Melo Neto.
Venerado no monumento dos Jerônimos, dorme Camões, submetido à tortura do cheiro dos pastéis de Belém sem nunca poder saboreá-los. Atirados em cova coletiva no Cemitério da Quarta Parada em São Paulo, repousam usuários anônimos. Todos fomos ou somos ligados pelo fio luminoso desta flor rara e maltratada. Todos somos donos da língua materna. Todos temos imenso poder sobre ela para apocopar, sintetizar ou protestar.
Somos livres para deslizar na norma culta. Ao fim, ela sobrevive e nós voltamos ao pó, que fará parte de novas argilas, tijolos rubros que construirão escolas onde alunos estudarão nossos termos como arcaísmos. A língua é sua pelo aluguel de uma vida. Depois, volta a ser um oceano roçando o palato das gentes de Cabo Verde, da Rocinha ou de Lisboa. Seja orgulhoso da Língua Portuguesa. Seja humilde, mortal vaidoso. Chore ou ria, oh pequeno átomo! Citando a rima mais rica: “saudade, sentir quem não há de?” Em Roma, havia o termo Spes. Com o tempo, alongou-se para a bela palavra esperança. Não a perca! Use bem a língua. Ela é sua, por mais algum tempo. Viva! Bofé!