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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Chá Revelação ou de ocultação? Reflexões sobre compartilhamento e individualidade

Talvez todo Chá Revelação seja também de ocultação, pois traz dados impactantes sobre o irrelevante

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Foto do author Leandro Karnal

Há livros que denunciam idade. Ter lido Pearl S. Buck, A Boa Terra, é um dos reveladores. Adorava os textos dela. Há uma cena na obra que me marcou: o casal chinês está com seu recém-nascido no colo e observa, embevecido, que o bebê é lindo, comentando em voz alta com a justa e merecida vaidade de genitores. De repente, a consciência! Isso pode causar inveja nos deuses, nos demônios, nos seres que estão por perto e odeiam a felicidade humana. Mudam o tom e ressaltam como a criança é horrorosa, de fealdade única, para evitar a inveja do mundo invisível.

Cena do filme ‘The Good Earth’, de Sidney Franklin e Victor Fleming, baseado no livro de Pearl S. Buck Foto: Metro-Goldwin Meyer/

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Ter memória dos livros da autora indica idade. Outro sinal: imaginar um mundo onde as coisas não precisavam ser compartilhadas sempre e com todo mundo. Parece que existia uma consciência de que há dados importantes para mim ou para a família, todavia o universo seguirá seu rumo, indiferente à nossa comoção privada.

Olho com estranheza a possibilidade de colorir de azul ou rosa o edifício mais alto do mundo em Dubai, o Burj Khalifa. Outros pais jogam corante em um córrego para que a cachoeira flua com a cor que dirá ao mundo o gênero do herdeiro. Vi um avião passando sobre um Chá Revelação e defumando o céu com as cores que encerram a angústia cósmica mais pungente de todas: menino ou menina? A imaginação corre solta, e a verba é ilimitada aparentemente.

Não sou censor de outras pessoas. A alegria genuína de um casal ao gerar vida é algo bonito. Sempre é prudente saber que o júbilo se reduz ao casal e ao círculo privado de uma parte, apenas uma parte, da família. A prima da cunhada da vizinha da minha sogra seguirá sua vida feliz se o bebê vier XX ou XY. Todos são livres para comemorar e compartilhar, sempre. Seria apenas prudente ter consciência de que o gênero da criança muda algumas pequenas coisas na decoração da minha residência, e só. O resto será o desafio enorme e prolongado de ser responsável por uma vida.

O que eu disse aqui vale para quase tudo e vale para mim. Publico conquistas nas minhas mídias sociais. Lá é o espaço para aqueles que desejam acompanhar temas profissionais ou pessoais. Os que não se interessam, a maioria da humanidade, podem livremente evitar. Devem! Lancei mais um livro? Ganhei um prêmio? Fui eleito para uma instituição de respeito? Tenho família pequena, meia dúzia de amigos... informo-os, mas nem todos no “inner circle” têm o mesmo interesse. É uma lição permanente de humildade: mesmo entre as pessoas que me amam, nem todos estão com vontade de comemorar o que é importante para mim. Alegram-se, alguns de forma genuína, outros até mais do que eu, mas o mundo segue, solene, indiferente à minha dor e à minha alegria. Mesmo quem me ama muito (e tenho pessoas que me amam muito) não pode superar a barreira entre minha dor e a dor deveras sentida por outro corpo. Faz tempo que acessei isso. Não se trata de dizer o óbvio, que eu não seja o centro do universo. É algo denso: mesmo que eu estivesse no centro do universo, minha alegria e meu desespero seriam meus. Eu sempre serei o único a sentir a dor e a delícia de ser quem eu sou.

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Comecei redigindo sobre Chá Revelação, mas terminei abordando consciência solitária. Para mim, foi um passo importante. Eu visitei tal pessoa no luto dela, mas ela não me visitou no meu. Eu dei um presente bom de aniversário, mas ela se esqueceu do meu. Eu, eu, eu... essa obsessão é fatal para a felicidade. Eu posso fazer o que eu desejar, contudo cada pessoa seguirá seu caminho, enquanto o mundo todo permanecerá onde está. Não é o sexo do meu herdeiro que não interessa a mais ninguém, sou eu e tudo o que diz respeito a mim. É libertador parar de buscar a aprovação da humanidade. Vivo uma lufada renovadora quando percebo que estou só, mesmo tendo amigos e família. E, no meio de quem amo, há momentos extraordinários de conexão, que me comovem. Passado o instante (uma faísca bonita), os seres seguem seu rumo. Sim, eu posso tingir de rosa o Oceano Atlântico para gritar que minha primogênita será uma menina, entretanto muitos pensarão no meu poder e no meu dinheiro. Depois, o mar volta ao tom natural, a menina cresce, o silêncio do tempo se impõe e o gênero se dilui na água de Heráclito.

Toda alegria é lícita, se respeitar a ética e o espaço alheio. Sofreríamos menos se parássemos de exigir do mundo uma comunhão integral.

Talvez todo Chá Revelação seja um chá de ocultação, pois produz o cenário impactante sobre dados irrelevantes. Não é Schopenhauer. Não sou e nunca fui pessimista. Tenho a consciência de Saramago ao comparar a esperança ao sal: não alimenta, mas dá sabor ao pão. Sou livre para comemorar. Se eu encontrar outra pessoa que tenha a mesma busca, sou feliz. Faça chás, revele tudo, comemore “mesversários”, publique nas mídias sociais e grite ao mundo que você é feliz... Aceite apenas que o “eu sou feliz” começa e volta sempre ao pronome de primeira pessoa no singular. O resto, como diria Hamlet, é silêncio.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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