Respire fundo e encare um parágrafo sofisticado de narrativa sobre uma linda mulher: “Realmente, a soberania da formosura e elegância, ela a tinha conquistado. Parecia que essa menina se guardara até aquele instante, para de improviso e no mais fidalgo salão da Corte fazer sua brilhante metamorfose.
Nessa noite ela quis ostentar-se deusa; e vestiu os fulgores da beleza, que desde então arrastaram após si a admiração geral. Seu trajo era um primor do gênero, pelo mimoso e delicado. Trazia o vestido de alvas escumilhas, com a saia toda rodada de largos folhos. Pequenos ramos de urze, com um só botão cor-de-rosa, apanhavam os fofos transparentes, que o menor sopro fazia arfar.
O forro de seda do corpinho, ligeiramente decotado, apenas debuxava entre a fina gaza os contornos nascentes do gárceo colo; e dentre as nuvens de rendas das mangas só escapava a parte inferior do mais lindo braço. Era o toque severo do pudor corrigindo a túnica da vestal imolada à admiração ardente das turbas”.
Você leu um trecho de um grande prosador, José de Alencar. É o capítulo cinco do livro Diva (1864), romance urbano ambientado na capital do Brasil.

Como de hábito, as personagens femininas são as mais elaboradas e merecem descrições longas. Emília é uma moça rica e de um excepcional pudor, recatada a ponto de ser quase irritante, avessa a coisas que animavam outras damas da Corte. O baile ocorre no Cassino, o palco mais exuberante do Rio de Janeiro.
Dificuldades em 2025 com um romance de 1864? A primeira é com o vocabulário. Escumilha indica um tecido fino e transparente. Folhos denotam babados. Urze é uma planta de flores roxas, que deviam estar bordadas sobre o tecido. Eu leio como bordado, mas poderiam ser as flores in natura ou artificiais, decorando a roupa.
O colo (a parte abaixo do pescoço) era coberto de gaze, tecido transparente (o autor prefere gaza). Uma túnica das sacerdotisas que viviam a castidade em Roma, as vestais, era mais aberta. O vestido de Emília era mais fechado.
Outra pedra para a leitura está no próprio tempo da narrativa, já que a roupa consome bastantes palavras. No nosso mundo contemporâneo, nos minutos em que percebemos detalhes do vestido da personagem, deveríamos ler uns três fatos impactantes para prender a atenção do leitor.
A narrativa de Alencar, em particular, fica detida em paisagens naturais, vestidos de mulheres, expressões faciais e sensações subjetivas. Houve uma mudança entre o público dos folhetins e hoje. Com menos imagens a ver e menos textos disponíveis, os poucos leitores do século 19 queriam um deleite com as palavras e observar como o cearense descreveria a cena, com finos detalhes, riqueza de palavras ou recursos de imaginação.
O mundo sem televisão, cinema, celular era mais apto à imaginação, pois havia a necessidade de recriar mentalmente Emília, o baile, a roupa e as investidas do jovem médico que a cortejava.
O que houve entre aquele universo e o nosso? Vou sintetizar: encolhemos. Como? Menor conhecimento de vocabulário, menos tempo, maior necessidade de ação, menos gosto para descrições longas, pouca paciência para parágrafos maiores, falta de foco, irritação com fluxos psicológicos e falta de sentimento estético lento e macerado de personagens que vivem em um mundo interior mais do que na ação concreta externa.
Surpresa: havia muitos críticos, no período do Segundo Reinado, ao costume dos folhetins das novelas mais curtas Diva, Lucíola, A Viuvinha, que costumavam sair em pequenos trechos nos jornais. O público ia lendo capítulos, aos poucos, como uma telenovela futura. Mais tarde, alguns desses folhetins se tornavam um livro impresso.
Havia quem indicasse um declínio sobre leitores de jornais que consumiam obras mais leves, com temática romântica, em detrimento de poemas épicos, como Os Lusíadas ou a Ilíada.
Pasmem-se, queridas leitoras e estimados leitores: o trecho sofisticado, com palavras mais raras, que foi apresentado no começo da crônica, era visto já como decadência. “O mundo envelhece” (mundus senescit), decai, tropeça, fica pior e mais superficial: é refrão repetido há muitos séculos. Alencar defendeu-se, em posfácio, sobre o uso de modernismos do francês na linguagem.
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Reli, em sequência, quatro livros de José de Alencar. Gosto de procurar palavras em dicionário. Isso só ocorreria com obras mais antigas? Curiosamente, sobre o quesito lexical, tive desafio superior em decifrar o vocabulário da série Sintonia (2019, Kondzilla e outros) que retrata a vida na periferia de São Paulo. Quando o excelente ator Christian Malheiros interpreta Nando, um traficante, preciso parar e pensar no que está sendo dito. São mundos com gramáticas e sentidos distintos do meu.
Gosto de aprender e ampliar minha maneira de pensar e ver o mundo, com meu respectivo vocabulário. Diva me ensina um retrato romântico psicológico. Sintonia me faz pensar sobre o evento chamado Fluxo. Não vivo um ou outro; interesso-me por ambos. Ler e ver o que já conheço me produz tédio. Quero voar sobre mundos diversos e outros tempos e lugares. Quero ser convidado a sair de mim. Tenho esperança nessas viagens.