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Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião | Sentir-se ocupado atende a uma demanda de culpa comum

Temos a dificuldade que a aristocracia superou há séculos: existir sem compromissos. Melhor – a nobreza entende como agenda o que a classe trabalhadora imagina ser lazer

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Foto do author Leandro Karnal

O fato ocorreu. Uma aluna de um curso livre reclamou que tivera uma massagem pela manhã, minha palestra sobre arte depois do almoço e, ainda, enfrentaria um jantar com amigas à noite. Fazia ar de cansada. Um dia com três compromissos! Eu soltei uma ironia: “Não sei como a senhora aguenta”. Ela sorriu e leu como solidariedade minha frase. Mais tarde, pensei que minha resposta era filha de uma inveja ressentida. Eu ministrava 64 aulas por semana, inclusive aos sábados à tarde. Tinha de prepará-las e deslocar-me pela cidade. Se me oferecessem uma jornada com massagem matinal, lindas imagens numa sala climatizada à tarde e comida de forma abundante à noite, eu teria um dia livre e feliz. A senhora, em questão, sentia genuíno esgotamento.

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Cansaço é relativo. Diz respeito às potências do sujeito e dos seus hábitos. Quem dá 64 aulas por semana olha para alguém que leciona 30 como um quase vagabundo. Existem especificidades também: há pessoas que vão ao supermercado e entram em coma, logo em seguida. O curioso não parece estar na variedade infinita do gênero humano, todavia no fato de que quase todo mundo se considera muito ocupado.

Meu pai trabalhou bastante. Houve um momento em que ele cursava Direito em Porto Alegre, lecionava latim, português em escolas maristas e era vereador em São Leopoldo (RS). Estudava nos ônibus. Emagrecia devido ao esforço. Depois, já com o título jurídico, atendia até a noite. Dizia a todos: “Minha agenda é por minuto”. Era verdade pelas audiências, viagens, consultas e compromissos. Passaram-se os anos, ele se concentrou apenas no escritório, abandonou o magistério e a política. Casal tradicional, ele nada fazia no nosso lar. Minha mãe providenciava tudo. Nos últimos dez anos da sua existência, deixou de advogar e entrou no merecido descanso. Curiosidade: a expressão “minha agenda é por minuto” permaneceu. Aos 75 anos, seus compromissos eram ler jornais, alimentar-se, ir à missa e jogar xadrez. O dia se esgarçava, lânguido. Sua consciência de homem atarefado sobreviveu. Morreu tranquilo, sem grandes atividades. Entrou na eternidade, com os minutos contados e agenda imaginária repleta. A família adotou com ironia o lema paterno: repetimos “minha agenda é por minuto” para lembrar nosso amado pai e a relatividade da fala.

Imagem ilustrativa de pessoas em ambiente de trabalho Foto: Adobe Stock

Sentir-se ocupado atende a uma demanda de culpa comum. Temos a dificuldade que a aristocracia superou há séculos: existir sem compromissos. Melhor – a nobreza entende como agenda o que a classe trabalhadora imagina ser lazer.

Volto à minha simpática aluna, paulista quatrocentona. Cada atividade implica preparar-se, vestir-se, ocupar a mente e enfrentar um novo ambiente. Eu entendo como compromisso de fato o que gera dinheiro. Não nasci duque. Um jantar está em escaninho diferente no cérebro. Para ela e para a Condessa Viúva da série Downton Abbey (feita pela genial Maggie Smith), emerge a dúvida: o que é um fim de semana? Todos os dias são tomados de jantares, eventos, aulas. Interessante: se alguém desejar marcar algo para a próxima semana, ela responderá como o mais ocupado dos pediatras de um posto do SUS: “Não posso!” Agenda é uma concepção psíquica e cultural.

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Exagero? Você já se encontrou com alguém que assume o ócio, afirma que nada faz e diz que possui o tempo todo livre? Deve ser alguém raro... Tente marcar um teatro para hoje à noite. Todos dirão que é muito em cima da hora, mesmo não tendo quaisquer compromissos no horizonte. Quase todos nos consideramos extremamente ocupados. E ainda ficamos ao celular nos elevadores para deixar claro ao mundo que a vida nos absorve por completo.

Sim, eu sei, querida leitora e estimado leitor, vocês têm muitos afazeres. Quem trabalha fora enfrenta o caos do mundo. Quem fica em casa descobre uma rotina de Penélope, a rainha da Ítaca que tinha de tecer todo dia e desfazer à noite o realizado. Uma casa é um buraco negro de tempo. Apesar disso, já pararam para pensar que sempre alegamos mais ocupações do que, de fato, temos? Identifico um discurso que nem sempre se casa com o real. É considerado chique no mundo da glamourização do cansaço (denunciada por Byung-Chul Han) andar rápido e consultar o celular como se nele houvesse os códigos das armas nucleares. Sim, somos atarefados. A pergunta: por que aumentamos ainda mais nossa ocupação? Do que nos defendemos quando encarnamos a figura do ser sem tempo para coisa alguma?

Convidei no fim da tarde um casal querido para um happy hour. Meu amigo respondeu: “Com prazer, desde que você não nos considere fáceis”. Aparentemente, ter tempo para a felicidade pode ser visto com desconfiança, pois a pessoa poderá ser classificada como “fácil”. Acredite: existe gente que, podendo, aceita um convite no dia e permite-se a alegria sem medo do julgamento. Tenho esperança em gente fácil. Os difíceis podem ter problemas cardíacos bem mais cedo... Boa semana para ocupados e para felizes.

Opinião por Leandro Karnal

É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

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