Aos 13 anos, quando dava os primeiros passos na carreira de ator mirim, como filho de Regina Duarte em Retrato de Mulher, da TV Globo, Caio Blat escreveu um romance policial chamado O Último Suspeito – que lhe valeu uma bolsa de estudos de um ano na escola que frequentava. Agora, aos 44, consagrado nos palcos e nas telas, ele assina, dirige e atua em uma adaptação de Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, que estreia em São Paulo nesta quinta-feira, 27.
O amor pelos livros é parte fundamental da atuação teatral de Caio Blat. “Eu sempre tento fazer essa ponte: partir de um texto clássico da literatura, transformando em uma peça popular e acessível”, diz. E puxa pela memória Macário, de Álvares de Azevedo, que adaptou em 2000.
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Uma característica de Blat como leitor é a tendência a “maratonar” os escritores de sua preferência. Se na adolescência isso era feito com escritores policiais como Agatha Christie, Conan Doyle, Dashiell Hammett e Georges Simenon, na maturidade os objetos de atenção foram Gonçalo Tavares, Valter Hugo Mãe, Graciliano Ramos – e Dostoiévski.
A porta de entrada foi Crime e Castigo. “Daí comecei a ler os romances curtos, contos. Fui investigando e entrei nessa paixão, nessa vontade de fazer algo com teatro”, recorda. “Eu e o Manoel Candeias começamos a ler tudo: vamos escolher uma obra para a gente adaptar. Quando chegamos aos Karamázov, não tivemos a menor dúvida.”

Por quê? “Primeiro que nos Karamázov tem a obra completa de Dostoiévski: tudo que ele desenvolveu está ali, todos os personagens, o estilo, a polifonia. Fora que todos os romances são mais psicológicos”, explica. “Crime e Castigo se passa muito na angústia de Raskólnikov trancado no quarto, O Idiota é a trajetória do príncipe Mýchkin. Karamázov não. Já é uma tragédia. Já é dramático. Já é um quebra-pau familiar com os personagens em conflito. Os diálogos são brilhantes, as cenas são brilhantes.”
Nesse meio tempo veio o encontro com o diretor Domingos de Oliveira (1936-2019), que Blat chama de “grande mestre fissurado por Dostoiévski”. Em 2011, ele atuou em Um Coração Fraco, conto de Dostoiévski adaptado por Oliveira e dirigido por Priscilla Rozembaum.
“Domingos me dizia: é impossível adaptar o Karamázov completo. Você tem que escolher um capítulo e aprofundar nele”, conta. “Eu falei: Domingos, eu tenho certeza de que dá para fazer inteiro, que dá para dar conta da trama, que dá para as pessoas entenderem a profundidade do texto, os personagens, dá para ser uma peça leve e moderna. Ele disse: ‘isso é impossível’, e essa foi uma das minhas maiores motivações.”
Mas qual seria o recorte da adaptação? Na edição da editora 34, com tradução de Paulo Bezerra, Os Irmãos Karamázov está dividido em dois volumes: um de 498 páginas, outro de 592. Como fazer isso caber em um espetáculo de duas horas?
“Eu optei por mergulhar só na trama da família, na trama policial. Esses três dias em que a família se reúne para tentar fazer um acerto de contas e os irmãos de alguma maneira acabam colaborando todos para matarem esse pai castrador, esse pai devasso”, diz Blat. “Eu acreditei que se a gente mergulhasse direto na trama policial, ali dentro os personagens se revelam e as grandes questões se revelam.”
No processo, foram utilizadas várias traduções diferentes – inclusive a de Rachel de Queiroz, do francês. Blat chegou a assistir a duas adaptações cinematográficas: a americana, de 1958, dirigida por Richard Brooks, com Yul Brynner (nascido em Vladivostok, na Rússia, e emigrado para os EUA aos sete anos), e a russa, de 1969, indicada ao Oscar de Filme Estrangeiro, com direção de Ivan Pýriev (que morreu durante as filmagens, deixando a película para ser concluída pelos atores Kirill Lavrov e Mikhail Uliánov). A primeira ele achou “muito ruim”; a segunda, “meio careta, demorada”.

Assim, acabou sendo mais útil o recurso à teoria literária – sim, Blat leu não apenas todo o Dostoiévski, mas muito sobre o autor, e discorre sobre ele com bastante familiaridade. Em Problemas da poética de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin (1895-1975) vê a originalidade do escritor russo na criação do que ele chama de romance polifônico, pois “suas obras marcam o surgimento de um herói cuja voz é tão plena como a palavra comum do autor; não está subordinada à imagem objetificada do herói como uma de suas características, mas tampouco serve de intérprete da voz do autor. Ela possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis”.
O conceito é tomado emprestado da música, e Blat incorporou-o à sua montagem. “Cada personagem que entra em cena toma para si a narrativa, impõe sua visão de mundo durante duas ou três cenas, até que outro personagem vem e toma a narrativa”, elucida. “Todos os personagens são oniscientes, que é uma inovação de Dostoiévski. Antes você tinha o autor onisciente e os personagens ali nos seus nichos. Agora não: todo personagem que entra sabe tudo que está acontecendo, sabe toda a trama da família, impõe o seu ponto de vista. De alguma maneira a própria estrutura do romance já é polifônica”, afirma.
Afinal, se na página impressa cada uma das vozes é lida de uma vez, no palco é possível realmente sobrepô-las – seja com os atores falando simultaneamente, seja cantando música polifônica, seja entrelaçando as cenas. “Talvez o teatro seja a ferramenta, a tecnologia ideal para sublinhar a polifonia como um dos elementos da contação da história, a revolução que Dostoiévski fez na literatura”, teoriza. “Esse salto realmente é a grande revolução de Dostoiévski – ter transformado o romance em algo que é contado em várias vozes.”
Com música ao vivo, composta durante os ensaios, o espetáculo abre com um canto polifônico russo que aos poucos se transfigura em samba. Essa atitude também se reflete na cenografia e figurinos, que evocam referências russas mas também apontam para elementos contemporâneos e universais.
Para sublinhar essa universalidade, a distribuição do elenco não se ateve a questões de tipos físicos ou gêneros convencionais. Dmítri, o irmão mais velho, é interpretado por Luisa Arraes, enquanto Aliocha, o caçula, fica com Nina Tomsic. O pai Karamázov é Babu Santana.
“Como Freud diz, esse texto, esse livro traz arquétipos fundadores do inconsciente humano. A horda primitiva – todos juntos para se livrarem daquele líder tirano –, ou o próprio complexo de Édipo – os filhos querendo se livrar do pai – são sentimentos fundadores da psique humana. Então tanto faz se é um homem, uma mulher, se é preto, se é branco, se usa a linguagem do século 19, se usa a linguagem atual, se é Rússia, se é Brasil. São coisas que todos nós sentimos”, afirma Blat.

Para si mesmo, ele reservou a parte do irmão do meio, Ivan Karamázov. Inicialmente, por uma razão prática: “O Ivan é um cara mais silencioso, mais observador. Este é um papel ideal para eu dirigir e atuar ao mesmo tempo”. Mas afinidades também entraram na conta: “Acho que Ivan traz essa coisa mais refinada, por ser um intelectual, o Karamázov que está mais ocidentalizado, com valores já ocidentais, acha a Rússia ultrapassada, medieval, essa coisa niilista, eu achei que tinha mais a ver comigo.”
Ter “maratonado” a obra do escritor russo foi especialmente útil ao adaptar seu derradeiro romance. Afinal, para Blat, “os irmãos carregam as grandes obras de Dostoiévski para dentro do livro. Eu acho que Aliocha de certa maneira é um espelho do príncipe Mýchkin (protagonista de O Idiota), Dmítri é um pouco o espírito de Raskólnikov (de Crime e Castigo), e Ivan é um pouco os revolucionários de Os Demônios."
“Os personagens de Dostoiévski estão sempre em estado falimentar, estão sempre em crise, sempre em desespero. Isso é muito teatral”, afirma. “Karamázov é uma tragédia. Karamázov tem todos os elementos da tragédia clássica. Foi muito fácil a adaptação.”
Como síntese do espetáculo, ele propõe: “É um dos maiores clássicos da humanidade traduzido numa peça pop rock.”
Os Irmãos Karamázov
- Direção de Caio Blat e Marina Vianna
- Sesc Pompeia (Rua Clélia, 93, Pompeia, São Paulo)
- A partir de 27/02
- Até 30/03
- Ingressos: R$ 21 (Credencial Plena), R$ 35 (Meia entrada) R$ 70 (Inteira)