Carla Madeira escreveu Tudo é Rio como um exercício de experimentação de linguagem. Ao finalizar a cena mais forte da história, um ato de violência que mudaria para sempre o destino do casal Dalva e Venâncio e que interferiria também na vida da prostituta Lucy, Carla travou. Ela tinha 33 anos e só foi retomar a escrita 15 anos depois, ainda sem pensar em publicar. Os amigos que leram a incentivaram. Em 2014, o romance foi lançado pela editora independente Quixote, de Belo Horizonte, onde Carla é uma renomada publicitária. Nos anos que se seguiram, o livro teve uma trajetória local respeitada - com 10 mil exemplares vendidos, segundo a autora.
Isso é muito, para os padrões, naquela época, de um autor nacional de ficção (algo que começou a mudar com Itamar Vieira Júnior). E não é nada perto do que viria depois. Em 2021, a editora Record relançou o livro e, com uma melhor distribuição e o boca a boca em torno do romance, Tudo é Rio estourou, teve os direitos vendidos para o cinema e não sai das vitrines das livrarias.
Em 2023, Carla Madeira confirma essa trajetória de sucesso ao se tornar não só a escritora brasileira mais vendida no ano, mas também a única ficcionista, entre homens ou mulheres, do País, a aparecer no ranking de 10 livros mais vendidos no Brasil, feita pela Nielsen BookScan - Tudo é Rio é o 9º colocado de uma lista dominada por Colleen Hoover. Segundo sua editora, só neste ano ela vendeu nada menos do que 131 mil exemplares. Desde o relançamento, já são mais de 350 mil cópias impressas e digitais.
Nascida em Belo Horizonte em 1964, estudante de Matemática que optou pela Comunicação e dona de uma agência de publicidade, Carla Madeira é autora de outras duas obras. A Natureza da Mordida, escrito depois de Tudo é Rio e também publicado pela primeira vez pela Quixote, com 4 mil exemplares vendidos no começo de sua trajetória, acompanha uma psicanalista aposentada apaixonada por literatura e uma jovem jornalista. E Véspera, posterior ao sucesso de seu romance de estreia, o primeiro revelado pela Record, parte da história de uma mulher destroçada por um casamento que em um momento de descontrole abandona seu filho e, imediatamente arrependida, volta para o lugar onde o deixou e não encontra vestígios de sua presença.
Somados, os três livros ultrapassam, nas edições da Record, segundo a editora, os 500 mil exemplares vendidos desde o lançamento. Só em 2023, foram 240 mil.
Na entrevista a seguir, Carla Madeira, de 58 anos, fala sobre literatura e psicanálise (ela se interessa pelo tema), conta o que a leva a escrever, diz que se tornou uma leitora melhor depois que passou a se dedicar à escrita e comenta as críticas ao desfecho de Tudo é Rio (confira também a resenha).
Quando começou a escrever, quando publicou seu livro por uma editora independente e local, imaginou chegar aonde chegou, ser a autora mais vendida do Brasil?
Quando comecei a escrever Tudo é Rio, não tinha ideia de que faria um livro. Começou muito mais como um exercício de linguagem, um gosto de explorar aquele narrador e a sua prosódia. Quando fui pega pela história, escrevi sem pensar muito na possibilidade de publicar. Só quando terminei, depois que alguns amigos leram e me disseram o que sentiram, comecei a pensar na possibilidade de publicar. Não imaginava que se tornaria um livro com uma ressonância tão grande dentro das pessoas.
Por que acha que Tudo é Rio afetou tanto os leitores?
Primeiro, me ocorre que Tudo é Rio é um livro que afeta o corpo do leitor. Eles me contam que sentiram um soco no estômago, ou que derramaram lágrimas, ou que morreram de tesão. E um corpo que aguenta um tranco quer produzir sentido. Além disso, acho que Tudo é Rio parece não se enquadrar em uma definição maniqueísta do tipo uma coisa ou outra: poético ou brutal? Sagrado ou profano? Anacrônico ou contemporâneo? Clichê ou surpreendente? Bem ou mal? Tudo parece estar lá. Tudo está em todos. E é nesse espaço indefinido que se abre espaço para a subjetividade do leitor. O leitor passa a se ouvir e a juntar alguma coisa esparramada dentro dele. Não porque concorda ou discorda, mas porque é perturbado em um lugar já em perturbação. Olha para o próprio tumulto com a sensação de poder iluminá-lo.
Esse livro já foi publicado há bastante tempo. E este é o terceiro ano dele como best-seller nacional. Mudou sua relação com o livro? Como você o vê hoje?
Não mudou minha relação. Tudo é Rio é o livro que quis fazer, não mudaria nada.
O que a fama te proporcionou, e tirou?
A literatura me proporcionou muito encontros, conheci muitas pessoas, tenho tido trocas maravilhosas, muitas reflexões, muita diversão e arte, afeto, poesia e horinhas de saúde. E me tornei uma leitora melhor, isso talvez tenha sido o maior acontecimento de todos. Por outro lado, tenho sido muito demandada e o excesso de atividades tem tirado meu tempo de escrita e de leitura. Já entendi que vou precisar pôr um limite e estou me organizando para isso. Estou com uma história querendo acontecer e quero me colocar disponível para ela.
O que a escrita significa para você?
Quando estou escrevendo sinto que não gostaria de estar fazendo outra coisa, entro em profundo envolvimento, salivo. Mesmo nas horas de angústia, quando não encontro o caminho, a palavra, o sentido, quero estar ali. Vivo com muita intensidade o processo criativo, e nos dias bons, quando bateio um diamante, experimento aquele breve e inesquecível instante em que a vida está completa, sobre a qual Cecília Meireles fala em seu poema Motivo. Acho que sou poeta embora faça prosa.
O que mobiliza sua escrita? De onde vêm as histórias?
Minhas histórias nascem de um acontecimento que me afeta, me assombra, me provoca. Olho para esse acontecimento com a necessidade de imaginar o que veio antes, o que virá depois e assim vou encontrando uma história. A condição humana, nossas potências de bem e de mal, e como isso vai se encaminhando a partir das nossas circunstâncias (a família que pertencemos, os pequenos acontecimentos que se tornam imensos), têm sido objeto de inquietação e curiosidade. Talvez eu escreva para dar conta da deriva da condição humana que me comove e angustia.
O que importa na literatura?
O que importa na literatura, em minha perspectiva de autora, é o processo criativo, o mergulho. É a adesão com o que estou fazendo, o instante de alinhamento.
O que você leva da publicidade para a sua literatura?
A publicidade me deu um grande treino com a síntese, a precisão das palavras. O ritmo, a frase capaz de dizer muito com pouco.
E da psicanálise?
A psicanálise tem me dado muitas perguntas. Pensar o gesto, o ato, o ser, com a possibilidade de não reduzir a complexidade de existir, em nome da tentação de um mundo que explica tudo, compreende tudo, controla tudo.
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E como leitora, o que procura em um livro, na experiência da leitura?
Procuro na leitura ser fisgada. E depois de me tornar uma escritora, procuro a liberdade do autor, alguma coisa que me faça envolvida, não só pela história, mas pelo jeito que ela é contada.
Uma das questões de Tudo é Rio é o perdão. Há quem veja o livro como machista. Numa sociedade que luta tanto contra o feminicídio, o que você quis mostrar com sua história?
Em um país onde a violência de gênero é imensa e a impunidade também, Tudo é Rio atrita ao colocar a questão do perdão. As pessoas que não aceitam o perdão narrado no desfecho do livro, talvez pensem que perdoar é uma espécie de “deixa pra lá”, vamos fingir que não aconteceu. Estas pessoas acham imperdoável o perdão que acontece na história, e leem um “viveram felizes para sempre” ao final do livro. Muitas outras pessoas, e eu me incluo neste grupo, entendem que o perdão é a única possibilidade de cessar a agressão e tirar a vítima das mãos de um agressor. Este grupo, diferente do primeiro, costuma perceber que o final do livro está em aberto, que o próximo passo traz a possibilidade dos abismos, como está dito no último parágrafo, ao mesmo tempo que a vida, o desejo de viver, está de volta com toda a sua umidade e possiblidades. Mas talvez o que realmente importe é que Tudo é rio tornou-se uma ocasião de conversar sobre a violência de gênero e é muito legal quando um livro passa a fazer parte das conversas que são relevantes para as pessoas.
Se você não tivesse travado depois de criar a cena de violência de Venâncio e tivesse escrito o desfecho quando começou a história, aos 33 anos, ele poderia ter sido outro? O que aprendeu sobre perdão de lá para cá?
O que tenho aprendido sobre o perdão é que quero viver em um mundo onde ele exista.