Na semana passada, a Rádio Novelo publicou o podcast CPF na Nota?, que trouxe um relato da jornalista e escritora Vanessa Barbara. Nele, ela aborda o fim de seu casamento após uma traição e também expõe como o assunto foi tratado de forma machista por seu círculo de conhecidos e amigos, em uma história que vem repercutindo nas redes sociais e no meio literário.
A autora já havia abordado o tema no livro Operação Impensável (2015), que ganhou o Prêmio Paraná de Literatura e foi, posteriormente, publicado pela Intrínseca. Na época, o Estadão entrevistou a autora sobre o livro.
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No livro, Lia e Tito viviam um casamento aparentemente feliz até o momento em que ele passa a noite em um hotel com a amante e pede nota fiscal. Como Lia havia cadastrado o CPF dele no sistema, é ela quem recebe o e-mail com o documento-bomba. O que se segue é uma avalanche de mentiras.
O livro é, assumidamente, autobiográfico. A escritora transformou em literatura episódios da sua vida privada, vividos em 2011, quando era casada com o editor André Conti, hoje, um dos sócios da editora Todavia. É esta história que ela conta no podcast, que virou assunto entre as pessoas que transitam no mundo das letras.
Nas suas redes sociais, André Conti assumiu o erro. “Manipulei e coagi minha ex-esposa de forma machista e misógina”, diz o editor na nota. “Há catorze anos, cometi uma série de erros dolorosos, que culminaram no fim de um casamento, episódio narrado agora num podcast. Tive quase quinze anos para refletir sobre o que aconteceu: as mentiras, a manipulação, a pequenez. Esse adultério, e a rede de mentiras que criei em torno dele, terminou por afetar a vida de dezenas de pessoas”, completa.

“Depois de catorze anos, tenho uma vida diferente e me sinto uma pessoa diferente, mas sei que independentemente dos anos e do meu arrependimento, e desse e de qualquer texto, as cicatrizes que deixei seguem machucando. Peço desculpas mais uma vez a todos que envolvi, em primeiro lugar para Vanessa e sua família”, conclui.
No podcast, a escritora fala de uma lista de transmissão de e-mails da qual o ex-marido fazia parte. Nestes e-mails, jornalistas, editores e escritores - todos homens, segundo Vanessa Barbara - expunham suas companheiras, de forma misógina e machista, compartilhando detalhes da intimidade delas. Conti também fala sobre estes e-mails. “Num grupo de e-mails, expus pessoas, traí amigos e colegas e inventei intrigas”, diz o editor.
A editora Todavia, da qual Conti é sócio e diretor de operações, também se pronunciou sobre o caso. No seu perfil no Instagram, publicou um comunicado reconhecendo “a gravidade dos acontecimentos narrados no podcast”. “Compreendemos a indignação causada pelos diversos exemplos de machismo e misoginia contidos no episódio, ocorrido há 14 anos, e nos solidarizamos com a justa revolta que gerou em muitas e muitos ouvintes. Sentimos muito, sobretudo, pelo sofrimento causado à vítima”, diz a nota.
“Nos últimos anos, o debate em torno das relações de gênero se aprofundou e situações que no passado eram normalizadas felizmente estão deixando de ser, graças à coragem de mulheres que decidem quebrar o silêncio. Desde sua fundação, em 2017, a editora tem publicado vários livros que acompanham essas transformações e conferem consistência a essa discussão. Temos consciência de que dar visibilidade às práticas machistas nos ajuda a evitar que ações como as narradas no podcast se repitam”, completa a nota.
Outra pessoa que resolveu se manifestar foi a atual esposa de André Conti, a também escritora Natércia Pontes, que usou o seu perfil no Substack para publicar o texto intitulado Prefiro ser ré a ser juíza.
No texto, Natércia diz defender a sua família constituída há quase 14 anos com Conti. O casal tem duas filhas de seis anos. “Sentir que alguém conclama contra sua família, que está no seu encalço como um chacal, é um sentimento que não desejo nem a ela”, escreveu a atual mulher de Conti.
FPC, o Grupo de e-mails, e o que os escritores disseram depois do podcast
O grupo de e-mails citado por Vanessa no podcast era chamado por seus participantes de FPC, as iniciais para “Fotos Pós-Chernobyl”. Os escritores Michel Laub, Joca Reiners Terron, Paulo Scott, Daniel Galera e Antônio Xerxenesky foram alguns dos nomes identificados que participavam do grupo.
Todos eles se manifestaram em suas redes sociais. Michel Laub usou o seu blog para elencar cinco pontos sobre o assunto. Observou que os acontecimentos foram há 14 anos e trouxeram muita dor. Ressaltou que muitas coisas mudaram neste período. “De 14 anos para cá muita coisa mudou: eu mesmo, o mundo, a forma como as relações de gênero são tratadas, a discussão sobre privacidade e uso de redes sociais. A partir da experiência de quase uma década e meia de cancelamentos, inclusive, houve uma evolução no debate sobre responsabilidade individual e proporcionalidade nos casos mais rumorosos que vêm à tona”, escreveu.
Outro que optou por escrever em um blog foi Joca Reiners Terron. Ele assume que estava na lista e pontua que as mensagens “se espalharam depois de subtraídas, indo parar nas mãos de gente mal-intencionada”. “Depois de 14 anos esse papo podia ter evoluído: os amigos que lamentaram, discutiram e se comoveram com a traição pusilânime do agora ex-marido e o terrível sofrimento da ex-esposa deviam ter dado sua versão dos fatos, e a evolução do debate das relações de gênero acontecida na última década na esteira do #metoo podia conduzir o tema a outro patamar”, escreveu o escritor.
Paulo Scott usou o seu perfil no Instagram para se manifestar. Ele disse que, embora participasse do grupo, enviava poucos e-mails. No post, Scott reconheceu a dor de Vanessa como legítima, mas defendeu que a responsabilidade pela dor não pode ser “estendida a pessoas que, direta ou indiretamente, nada fizeram para o fim dessa relação ou interferiram em seus desdobramentos posteriores”.
O também escritor Daniel Galera usou o seu perfil no Bluesky para dizer que se solidariza com a dor dos envolvidos. No entanto, defende que a forma como a lista de e-mails é descrita no podcast é inverídica. “Também é inverídica a alegação de que participantes teriam ativamente criado empecilhos pra carreira da Vanessa”, completou.
Antônio Xerxenesky usou o seu perfil no Substack para comentar o caso. “Fomos todos criados num imenso caldo de machismo e misoginia e reproduzi falas e comportamentos por volta dessa época dos quais me arrependo e me envergonho”, reconhece. O autor diz que, além do arrependimento, ele mudou nos anos que se passaram depois do fim do grupo. “Não sou a mesma pessoa que era há 15 anos. Na verdade, aquele idiota irresponsável é praticamente irreconhecível para mim. Construí uma vida profissional e uma família com muito amor. Espero que, no futuro, isso pese mais do que meus erros do passado”, escreveu.