Livro ‘Teatro e Escravidão no Brasil’ traz um recorte racial revelador na dramaturgia

Obra traça panorama de 50 anos, de 1838 a 1888, do papel que o palco desempenhou no debate das questões escravagistas

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Por Alessandro Hernandez

Quando completou sete anos, no dia 13 de maio de 1888, o escritor Lima Barreto, cuja avó fora escravizada, foi - acompanhado do seu pai - assistir à cerimônia que simbolicamente determinou o fim da escravidão no País. O relato desta festa foi feito por ele anos depois em uma crônica intitulada Maio. Nela, ele ressalta que na infância não conhecia nenhuma pessoa escravizada, que o cativeiro não o impressionava e que lhe faltava conhecimento da vexatória instituição.

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A data festiva à qual Lima Barreto se refere é a marca final da cronologia apresentada pelo crítico, historiador e professor João Roberto Faria em Teatro e Escravidão no Brasil, livro publicado pela Editora Perspectiva, no qual traz um panorama de 50 anos, de 1838 a 1888, do papel que o teatro desempenhou nas questões relacionadas à escravidão.

Nessa mesma data à qual se refere o escritor Lima Barreto, à noite, era encenado no Teatro Santana, no Rio de Janeiro, o espetáculo A Cabana do Pai Tomás, célebre montagem da época que estreou em 1876 na capital do Brasil e percorreu muitas províncias.

As diversas montagens, temporadas e adaptações do romance romântico escravista da abolicionista e escritora estadunidense Harriet Beecher Stowe nos palcos brasileiros são relatadas em um dos sete capítulos do detalhado e instigante livro.

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O escritor Lima Barreto, em registro do Instituto de Neuropatologia, em 1919  Foto: Acervo Estadão

Essas adaptações, mesmo carregadas de dramaticidade, não deixavam de explicitar ao final a mensagem abolicionista e fazer uma crítica à escravidão, sendo chamada por alguns jornais da época de “peça de propaganda” ou “drama de propaganda abolicionista”. A Cabana do Pai Tomás foi uma das mais de cem peças escritas ou publicadas em todo o Brasil com críticas à escravidão e à sociedade escravocrata.

Para além da análise dos textos, o livro faz um relato das representações que, com a iminência da consagração do fim da escravidão a partir de 1879 e a campanha abolicionista atingindo o Parlamento, passam a ser complementadas com récitas, cortejos pelas ruas da cidade, aclamações, discursos com bandas de música e cerimônias, onde pessoas escravizadas recebiam publicamente a carta de alforria.

Chama atenção a apurada pesquisa realizada por João Roberto, feita principalmente a partir dos relatos contidos nos órgãos de imprensa da época. Percebe-se uma quantidade muito maior de jornais dando destaque aos eventos teatrais, diferentemente do que acontece hoje no País, com detalhamentos da recepção do público.

De forma bastante contemporânea e performática, ele destaca uma dessas recepções a partir de um registro realizado no Diário do Grão-Pará, já dois dias após a abolição.

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Durante a apresentação de A Cabana do Pai Tomás no Teatro-Circo Cosmopolita, em Belém, no começo do segundo ato, onde se apresentava um escravo sendo açoitado, explicitando os horrores da escravidão, o Sr. Marcelino Barata inusitadamente interrompe o espetáculo e diz que aquele quadro de horrores não tinha mais razão de ser, que em um dia em que o Brasil inteiro saúda com prazer a liberdade não deveria haver lágrimas que chorem a escravidão, que o povo abria mão do espetáculo e pagava só para ver a apoteose da liberdade. O discurso e a peça foram interrompidos com um tumulto indescritível e apresentou-se apenas a cena final da “apoteose da liberdade”. A noite terminou com aclamações e festa.

Esses relatos, coletados em jornais da época, evidenciam que os artistas do teatro não estavam sozinhos nessa campanha. As representações se complementavam com as ações do público e a presença marcante da imprensa que impulsionava o olhar para a ideia de ruptura com o sistema escravagista.

Capa do livro Teatro e Escravidão no Brasil, de João Roberto Faria Foto: Editora Perspectiva

No entanto, se a cadência explosiva das ideias acerca da abolição no teatro foi contemplada por grande parte da sociedade, a censura à escravidão apontada nas dramaturgias foi algo vigiado institucionalmente em anos anteriores com ênfase, a partir de 1843, na criação do Conservatório Dramático Brasileiro. Ele tinha como premissa fazer a leitura prévia das peças teatrais e determinar se podiam ser representadas ou se seriam proibidas, e o mais contraditório dessa instituição é perceber que os censores eram escritores e intelectuais da época como Gonçalves de Magalhães, Martins Pena, José de Alencar e Machado de Assis.

Segundo o autor, não foram poucas as peças que sofreram cortes ou foram inteiramente proibidas de subir à cena quando apresentavam aspectos da escravidão por um prisma crítico, condenando sua violência e ignomínia.

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Nesse aspecto, ele destaca um parecer específico de Machado de Assis realizado em 1862, quando ele tinha 23 anos, que curiosamente só foi descoberto em 1952, a respeito de uma censura determinada por ele acerca da representação de um drama em quatro atos intitulado Mistérios Sociais, do português Augusto César de Lacerda. O argumento principal apontado por ele é a inconveniência de ser o protagonista da peça um ex-escravo que casa com uma mulher branca. Mesmo no papel de crítico teatral desde 1859, elogiando e aplaudindo peças brasileiras que criticavam a escravidão, e se fizermos um mapeamento de seu projeto literário com destaque para o conto Pai Contra Mãe, escrito em 1906, onde no primeiro parágrafo ele faz um detalhamento muito preciso dos ofícios e aparelhos institucionalizados para o castigo e a violência aplicada às pessoas escravizadas, parece ser bastante contraditório imaginar que ele possa ter exercido na função de censor a impossibilidade de uma dramaturgia ser encenada.

São essas e outras curiosidades - como o fato de em 1865 existir uma voz feminina contra a escravidão marcando presença nos palcos do Rio de Janeiro com o texto Cancros Sociais, da dramaturga Maria Ribeiro - que fazem a leitura de Teatro e Escravidão no Brasil obrigatória para o entendimento desse período, no que diz respeito à presença do movimento teatral no País como território de enfrentamento às causas sociais e políticas.

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