‘O livro é uma coisa quase erótica’, diz Gita Guinsburg; editora Perspectiva faz 60 anos

Aos 93 anos, a viúva de Jacó Guinsburg relembra momentos marcantes da editora fundada pelo marido, reflete sobre o futuro e fala de suas experiências com inteligência artificial

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Por Leonardo Neto
Atualização:

Importante no cenário editorial brasileiro por seu catálogo que se tornou referência para as Humanidades, a Perspectiva completa 60 anos em 2025. A editora foi fundada em 1965 por Jacó Guinsburg (1921-2018), um migrante judeu nascido na Bessarábia, região que atualmente fica entre a Ucrânia e a Moldávia. Chegou ao Brasil com 3 anos e aqui fez história.

Hoje a casa é presidida por Gita K. Guinsburg, viúva de Jacó que, aos 93 anos, conduz a editora com um olho no passado e outro no futuro. Quer preservar o legado deixado pelo marido ao mesmo tempo que acompanha (e vê com bons olhos) a evolução das inteligências artificiais.

Gita Guinsburg conduz a editora criada por seu marido, com um olho no passado e outro no futuro, traçando linhas a partir de um ponto de origem, como na matemática Foto: Felipe Rau/Estadão

Professora aposentada do Instituto de Física da USP, Gita busca na matemática uma metáfora que explica a sua atuação na editora. “A minha perspectiva foi manter a perspectiva. Isso eu posso dizer tanto no sentido matemático quanto no sentido da editora. Porque você constrói a perspectiva a partir de um ponto e vai traçando as linhas. Então, você tem um ponto de partida para construir a perspectiva. E isso vale tanto para a perspectiva com p minúsculo quanto para a Perspectiva, com P maiúsculo. Porque à medida que você avança, você amplia o quadro, mas você não quer esquecer o ponto original lá de trás”, disse em entrevista ao Estadão.

A história da Perspectiva

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O ponto originário da Perspectiva é Jacó que, quando morreu, deixou um catálogo gigante, dividido em coleções que se tornaram referência absoluta em áreas como artes, teatro, ciências humanas, filosofia, psicanálise, crítica literária, arquitetura e urbanismo, semiótica e epistemologia.

Depois de passar uma temporada estudando filosofia na Universidade de Sorbonne, Jacó retornou ao Brasil em 1965, com a ideia de fundar uma editora. Queria publicar pensadores judaicos. Juntou-se a um grupo de amigos para criar a editora e publicar a coleção Judaica, com 12 volumes que registram a história e a cultura judaicas.

O editor e crítico Jacó Guinsburg foi o fundador da Editora Perspectiva 

A motivação de Jacó, explica Gita, era resguardar a memória e o conhecimento do povo judeu, especialmente depois do Holocausto. “Como acontece em todos os povos, os judeus criaram, ao longo da sua história, um sistema ou um conglomerado de conhecimento, de histórias, fantasias e sonhos. Na cabeça do Jacó, a ideia era fazer uma coleção judaica que, de alguma forma, reunisse esse conglomerado”, relembra a editora.

A coleção serviu de lastro para que a editora se diversificasse. Depois da Judaica, veio a icônica Debates, na qual a Perspectiva passou a publicar ensaios nas áreas de artes e ciências humanas. Com o passar dos anos, a Debates reuniu nomes como Umberto Eco, Roman Jakobson, Max Bense, Martin Buber, Tzvetan Todorov, Fernand Braudel, Gershom Scholem, Anatol Rosenfeld, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi.

Presente e futuro

Depois da morte de Jacó, a editora passou por uma reestruturação societária. Sérgio Kon, sobrinho de Gita que já estava na estrutura da Perspectiva, se tornou sócio em 2018. Assumiu a direção editorial da casa, com a missão de manter o legado de Jacó e criar frentes. É ideia dele, por exemplo, as coleções Palavras Negras e Hip-Hop em Perspectiva.

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No ano seguinte, Alexandre Fonseca, livreiro com mais de 15 anos de experiência na Livraria Cultura e que já estava no time da Perspectiva desde 2015, também tornou-se sócio.

“Eu acho que hoje a gente trabalha em um sistema de colaboração muito estreito: os três e todo o resto da equipe. Hoje a gente tem um sentido comunitário muito maior do que sempre foi aqui na editora”, disse Kon ao Estadão.

Já Alexandre se colocou como meta manter o legado de Jacó e Gita, apesar das mudanças no mercado. “No mundo de hoje, com a maneira com que as pessoas se relacionam com o conhecimento hoje, isso é desafiador. Felizmente, a Gita tem ajudado muito”, disse.

O desafio, segundo Gita, é alcançar o equilíbrio entre manter a qualidade do catálogo e publicar livros com apelo comercial. Ela enxerga o livro como uma ferramenta de fruição e aprendizado, capaz de abrir um mundo novo para o leitor. Mas é também uma ferramenta de prazer. “O livro é um objeto quase erótico. A gente pega o livro na mão e pegar um livro na mão é um prazer”, disse a editora que defendeu ainda políticas públicas para o incentivo à leitura.

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Inteligências artificiais

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Gita é apaixonada pela matemática. “Eu acho os números primos a coisa mais linda do mundo”, chega a dizer na entrevista. E é com esse olhar, de teórica e fã da matemática, que ela enxerga a escalada das ferramentas de inteligência artificial.

Assume que tentou usar uma única vez, para resumir um texto longo, mas a resposta da IA foi que o texto era grande demais para ser resumido. “Essa, pelo visto, foi desenvolvida em água de batata”, ri.

Apesar da sua pouca familiaridade com o uso, acompanha de perto a sua evolução. Fica admirada com a forma como as inteligências artificiais aprendem. “É um jeito curioso, porque ela aprende por repetição. Se acerta, continua. Se erra, começa de novo. Então, mostra para ela um aviãozinho, depois um carro, ela tem de distinguir, né? Quando diferenciar o avião do carro ou do helicóptero, vai distinguir todos os meios de locomoção. Tudo bem? E o fato de ela produzir textos é mais incrível ainda”, diz.

Gita Guinsburg sentada à mesa que pertenceu a Jacó Foto: Felipe Rau/Estadão

A nonagenária atenta às evoluções atuais acredita que a IA é uma grande aliada da ciência. “Ela tem sido um elemento tremendo de ajuda na saúde pública e para profissionais que fazem ciências, por exemplo. Os dois cientistas que venceram o Prêmio Nobel deste ano ganharam graças à inteligência artificial, porque ela tem meios de acumular uma quantidade imensa que jamais seríamos capazes”, conclui a editora sobre o assunto.

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Seis anos sem Jacó

Passados seis anos da morte de Jacó, Gita ainda sente a sua falta, em especial em um aspecto: o diálogo. “Tenho uma família querida, bastante próxima, mas do que eu sinto falta é do diálogo, a despeito de estar cercada de carinho”, revelou.

Jacó e Gita Guinsburg retratados no documentário 'Jacó Guinsburg – Um Intelectual em Cena', de Evaldo Mocarzel Foto: Reprodução do documentário 'Jacó Guinsburg - um intelectual em cena'

“Os temas que me interessam, às vezes, não podem ser compartilhados porque as preocupações dos outros estão em outra área”, lamentou ela.

“Kon e Fonseca (os sócios), além da família, estão sempre fazendo com que eu viva. Eu devo dizer isso”, completou Gita.