No prefácio de Aqui de Dentro, livro de Sam Shepard editado em fevereiro nos EUA, Patti Smith escreve que a realidade é superestimada. “O que sobra são as palavras rabiscadas num panorama que se desdobra, vestígios de imagens poeirentas arrancadas à memória, um canto fúnebre de vozes desaparecidas, vagueando pela planície americana.” Aqui de Dentro é um pequeno volume de 203 páginas. Uma joia lapidada por um artista em pleno domínio do seu métier, e são as palavras.

+++ Deap Vally vem a festival gratuito para mostrar a fúria calorenta do rock de guitarra Desnecessário apresentar Sam Shepard, o ator, o autor. Quando morreu em julho, aos 73 anos, todos os obituários lembraram os grandes papéis (Os Eleitos, Os Eleitos, Os Eleitos) e as grandes peças, a maior das quais, Criança Enterrada, lhe deu o Pulitzer. As novelas são menos conhecidas. Aqui de Dentro possui um formato difícil de classificar. Divide-se em capítulos que navegam em diferentes formas de narração, como se o autor estivesse se experimentando. Relato tradicional, devaneios surreais, diálogo direto, o chamado ‘straight up’.+++ Celebrado nos EUA, Colson Whitehead explora escravidão para falar do racismo de hoje O personagem é o Ator. Acorda de madrugada, um breu. Coiotes à distância. A hora do lobo, como dizia Ingmar Bergman. E, nesse primeiro capítulo - fragmento? -, já aparece a mulher com quem viveu quase 30 anos e com a qual rompeu, de repente, há dois. Lembranças de mulheres, e do pai. Ele aparece quase em seguida, numa cena de sexo selvagem que assombra o filho menino, o futuro Ator. Gritos de prazer e horror. No quarto ao lado, montada no pai e gozando loucamente, está Felicity, a mulher que vai iniciar o narrador, aos 13 anos. No quarto, o cheiro de eucalipto e vaselina. Não por acaso, são as palavras que encerram o livro - “Eucalipto e vaselina? Lembro a mãe me passando no tempo. Fazia a gente lacrimar”. Na sua forma ficcional ‘livre’, Aqui de Dentro tem muito de autobiográfico, mas não mais que as peças. Shepard disse certa vez que foi sempre autobiográfico, mas não necessariamente confessional. Deplorava a falsidade das biografias: “Nunca li uma em que o biografado não fosse o herói de sua vida”. Aqui de Dentro constrói-se como uma particular Odisseia, em que um edipiano enterra o pai e acerta contas com o mundo. Vale lembrar que Paris, Texas, clássico de Wim Wenders com roteiro de Shepard, narrava outra Odisseia. Ulisses/Travis e Telêmaco.+++ Em cartaz no cinema, animação mostra a força dramática da pintura de Van Gogh O pai e as mulheres. Felicity é a mais mítica, mas tem a Garota Chantagem, que ameaça publicar um livro com todas as conversas que teve com o Ator ao telefone. Ela as transcreveu e agora diz que vai transformar em livro. Se o todo tem esse formato de um relato interior - aqui de dentro -, as partes com a Garota Chantagem, com seu diálogo taco no taco, lembram as peças. Para a maioria da crítica, será um Sam Shepard menor. Menor? Há algo de pungente nesse desnudamento e nessas memórias poeirentas, num Oeste desolado que não é mais o da lenda, um tema recorrente do autor. Outra biografia? O personagem é um solitário que não quer ficar sozinho e se debate com seu íncubo. Sam? É ele, uma espécie de ele, mas não ele de verdade. Afinal, vale repetir Patti Smith, a realidade é superestimada, e Sam Shepard sempre soube disso.+++ Exposição nega fama do Brasil pacíficoAQUI DE DENTROAutor: Sam ShepardTradução: Denise BottmannEd.: Estação Liberdade (208 págs., R$ 39)