Durante uma longa hospitalização em 2001, quando Sharon Stone estava sob tratamento por causa de um derrame e uma hemorragia subaracnóide que havia se espalhado por seu cérebro, cabeça e coluna, ela escreve que recebeu a visita de sua avó Lela, morta havia trinta anos.
“É aqui que as coisas ficam mais esquisitas”, escreve Stone num novo livro de memórias, The Beauty of Living Twice [algo como “A beleza de viver duas vezes”], que a Knopf publicará na terça-feira, 30. Lela viera lhe transmitir um aviso: “Faça o que fizer, não mova o pescoço”.
É uma das várias cenas de sua vida que Stone, a estrela de 63 anos de filmes como Instinto Selvagem, Cassino e Rápida e Mortal, relata com franqueza e um certo humor sarcástico. Apesar de sua longa carreira interpretando femme fatales e mulheres misteriosas em Hollywood - e até mesmo em séries de televisão recentes como Mosaic e Ratched - suas memórias são uma narrativa mais episódica de sua vida e formação, especialmente sua juventude na modesta Meadville, Pensilvânia, e sua família indelével, mas problemática.
Como ela explicou numa entrevista por vídeo em fevereiro: “Acredito que o objetivo do meu livro é que ele narra uma vida bastante comum. Não acho que minha vida seja excepcional, fora o fato de que acabei sendo uma estrela de cinema. Este livro poderia ser escrito por muitas outras pessoas que cresceram numa cidade pequena.
É uma história que Stone muitas vezes conta em detalhes inabaláveis, começando com a experiência de quase morte que a inspirou a escrever o livro. “Depois de tudo isso no meu pescoço, consegui voltar a respirar”, disse ela. “Consegui voltar a falar. Respirar e falar de um jeito diferente”.
Ela falou mais sobre a criação de The Beauty of Living Twice, as experiências pessoais que o livro narra e como ele a encorajou a se reavaliar. Aqui vão trechos editados dessa conversa.
Por que você decidiu escrever esse livro de memórias?
Eu vinha tentando publicar meus contos e todo mundo me dizia: ninguém quer ler contos. Acho que o que eles queriam dizer de verdade era: nós só queremos explorar sua vida privada. E eu não queria fazer isso na época. Mas aí meu amigo Kael (o autor J. Kael Weston), que escreveu The Mirror Test [O teste do espelho] pediu que seu editor, Tim O’Connell, da Knopf, desse uma olhada.
Nesse meio tempo, escrevi uma carta para a Janklow & Nesbit perguntando o que fazer para conseguir um agente. Então, a Knopf e outra editora começaram a me apresentar algumas propostas. Achei que aprenderia mais com Tim e Sonny Mehta (o reverenciado editor da Knopf que morreu em 2019). Sonny leu minhas coisas e disse que achava que eu seria sua próxima contadora de histórias.
Você teve algum processo de escrita específico enquanto trabalhava no livro?
Na época em que eu estava bem focada no livro, fiz dois filmes em Nova York e todos os dias de folga ia para a Knopf, me fechava numa salinha e escrevia. Pegava um pouco de comida ou pedia um pouco de comida e passava cinco, oito, doze, quinze horas só escrevendo.
Você ficou preocupada em ser reconhecida na sede da editora?
Estava chovendo e nevando muito naquele inverno. Eu chegava lá de chapéu e casaco, com o computador e mais algumas coisas. Ninguém dava a mínima para mim.
Você revela muitas informações intensamente pessoais no livro a respeito de sua família e sua infância, até mesmo detalhes de como você e sua irmã, Kelly, foram abusadas sexualmente por um avô. Você conversou sobre isso com seus parentes antes de publicar o livro?
Minha irmã e eu tomamos essa decisão juntas. Conversamos com minha mãe e, no começo, ela foi muito estóica e me escreveu uma carta dizendo como todas essas informações eram desconcertantes. Toda aquela coisa piedosa, horrorizada, eu-não-quero-falar-sobre-isso.
Então minha irmã ficou muito sobrecarregada quando minha mãe estava ficando na casa dela e foi fundo na história. E minha mãe teve uma revelação. Quando terminei o livro, eu o li para minha mãe ao longo de três dias. E eu estava com gripe na época. Estava de cama e ela se deitou comigo enquanto eu terminava de ler, aí gravei uma hora e meia da nossa conversa. Depois reescrevi muitas partes do livro. E decidi dedicar o livro a ela.
Você fica apreensiva com o fato de as pessoas ficarem sabendo dessas coisas sobre você?
Se você não fica apreensiva, as pessoas vão dar um jeito de deixar você apreensiva. Passei praticamente toda a vida adulta com pessoas inventando minha vida por mim. Esperar a chegada desse livro me deu um pouco de frio na barriga. Agora o livro vai sair no período mais ameaçador, perturbador e psicologicamente agressivo que nosso mundo já viveu desde os anos 1960, e vou estar aberta e vulnerável. Sei que vou enfrentar esse problema. Mas eu não quero me armar até os dentes, não quero ficar na defensiva. Quero me preparar para estar aberta e presente. Porque esse é o propósito da minha jornada.
O livro tem algumas cenas violentas - uma lesão no pescoço que você sofreu num acidente de cavalgada quando era adolescente, o falecimento de um tio que escorregou e congelou até a morte - mas você encontra maneiras ironicamente engraçadas de escrevê-las. Como é que foi isso?
Tenho uma personalidade meio sarcástica. Realmente acho que precisamos encarar a vida com certa graça, e o humor ajuda muito nisso. Quer dizer, tive uma oportunidade única na minha carreira de interpretar a vilã. Quando eu estava na escola, meu professor de atuação me fez estudar com um cara que ensinava você a explorar seu lado sombrio. E eu fiquei muito surpresa quando dei uma boa olhada em mim mesma - eu fiquei tipo, será que é isso mesmo? Você não é tão ruim assim. Não tenho medo da minha própria sombra. Quando você conhece a profundidade e a amplitude do seu lado sombrio... (o telefone dela começa a tocar o toque Happy, de Pharrell Williams. Ela ignora a ligação e, depois de algumas risadas, retoma a resposta).
As pessoas continuam me procurando para fazer esses papéis porque acham que sou boa nisso e acho que eles acham que gosto de fazer essas coisas. Na verdade, não gosto de fazer esses papéis. E realmente não quero mais fazer - não se não tiver algum propósito. Se vou interpretar um papel sombrio agora, preciso de um motivo além do mero “vai ser divertido”. Acho super engraçada a coisa do macaco-no-ombro (uma excentricidade de sua personagem Lenore Osgood na série Ratched, da Netflix). Eu falei para o Ryan (Murphy, que desenvolveu a série), quando tudo acabar, a gente pode remover o macaco digitalmente e a atuação vai continuar bem interessante.
Além das passagens do livro em que você escreve sobre seu trabalho em filmes como 'Instinto Selvagem' e 'Cassino', você não se concentra muito na sua carreira no cinema. Por que não?
(Pausa). Não era exatamente nisso que eu estava trabalhando no momento. Os filmes simplesmente não faziam parte daquilo a que eu estava tentando chegar de verdade.
Você também não fala muito dos seus casamentos anteriores. Mas diz que teve de assinar um acordo de confidencialidade com seu segundo marido, o jornalista Phil Bronstein.
Sim, antes de nos casarmos me pediram para assinar um determinado tipo de acordo de confidencialidade.
Não pareceu um acordo meio incomum de se assinar?
Diria que você é um cara muito inteligente, um jornalista. Se quiser saber alguma coisa sobre o assunto, tenho certeza de que consegue descobrir sozinho.
Você planeja deixar de atuar para se concentrar mais na escrita?
Bom, na verdade eu deixei meus agentes e empresários e todas essas pessoas irem embora. Agora só quero ser contratada por diretores que me escolherem pessoalmente. Não quero mais que me promovam para ninguém. Não quero ser oferecida às pessoas porque posso financiar seus filmes. Não quero ser comprada. Não quero que outras pessoas decidam que material devo ver ou não. Então só estou aceitando ofertas diretas.
Como as pessoas podem procurá-la com essas ofertas agora?
A maioria das pessoas conhece alguma maneira de entrar em contato comigo. Podem enviar coisas para meu relações públicas, que as encaminha para mim. E, claro, estou no Instagram. Cansei desse negócio de as pessoas me dizerem todas as razões pelas quais eu não posso trabalhar. Foram quarenta anos de muito alta, muito baixa, muito gorda, muito magra, muito loira, muito morena, muito jovem, muito velha. Muito isso, muito aquilo. Não estou mais interessada nessas coisas. Então, se um diretor me quiser, especificamente, ele vai conseguir me encontrar.
Tradução de Renato Prelorentzou