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Opinião | Brasília 2024: 'Salomé' ou a força do desejo

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Diário crítico (6)

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BRASÍLIA - Salomé (PE), quinto concorrente da mostra de longas, poderia até chocar a plateia. Afinal, tem pelo menos uma cena de sexo explícito, embora pouco entusiasmado. Mas não. Foi bem recebido, por um público que parecia afinado e compreensivo com aquilo que o diretor André Antonio definiu como "drama queer". Na verdade, é até mais que isso, abrindo janelas para o melodrama, a releitura bíblica e a ficção científica, havendo até quem o comparasse a A Substância, impostura de Coralie Fargeat,que vem fazendo algum sucesso entre o público cult. 

Em sua sinopse, Salomé parece algo simples. Cecilia (Aura do Nascimento) é uma jovem modelo de sucesso, que retorna ao Recife para passar o Natal com a mãe. Um amigo de infância, João (Fillipy Sizernando) lhe apresenta a uma substância verde, que, ingerida, produziria um estranho êxtase. Contrariando a mãe, Cecilia acaba se apaixonando por João e tenciona levá-lo consigo em suas viagens de trabalho. "Vou sustentar o bofe", como ela diz. 

Há no filme uma virtude que salta à vista - ele foge ao moralismo e à pudicícia do cinema brasileiro contemporâneo, que parece ser feito por gente que tem medo de sexo. Trata a paixão como ela é,  avassaladora, com o desejo em suas nuances e contradições, e o fetiche, visto sem preconceitos, como aquilo que dá suporte ao desejo. É um filme sexualizado. Tem hormônios. 

"O projeto nasce da vontade de olhar de frente, sem moralismos, para a minha sexualidade. A gente está louco para discutir esses fetiches. Mas o cinema não fala disso, nem o independente. O sexo é muito higienizado no cinema atual", disse o diretor durante o debate do longa. "Fetiche vem de feitiço" acrescenta. O feitiço do tesão. Já Marx falava do  fetiche da mercadoria, em que relações entre humanos se transformavam em relações entre mercadorias. (Mas quem lembra Marx hoje em dia?)

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O filme é não apenas saturado em cores mas em referências. A principal delas, diz o diretor, ao cinema queer norte-americano dos anos 1970, com suas cores muito fortes de 16 mm, estabelecendo uma distância do realismo. As cores como experiência mística, lembrando algo de Andy Warhol e Pasolini, no projeto de trazer para a tela grande rostos e corpos que não estão lá habitualmente. "Esse cinema dos anos 1970 é uma mina de ouro, e que não continuou", diz. 

É uma história de fantasia e desejo, de fato, e que bebe também em outra fonte óbvia, Salomé, a peça de Oscar Wilde, que, lembre-se, foi jogado na prisão num tempo em que a homossexualidade era proscrita na Inglaterra. 

O filme tem uma espécie de plano e contraplano que funciona muito bem. Num, temos a relação entre Cecília e João, que vai ganhando ares mais fantásticos à medida que se aproxima de uma seita devotada a Salomé; no outro, a mãe (interpretada por uma atriz trans, Renata Carvalho), representando o polo do conservadorismo materno, que pensa a relação como prejudicial à filha, que tem uma carreira brilhante, etc. Esse contraste, com suas misturas e planos de significação, é bem interessante. O humor também está presente e impede que seja apenas militante. 

E é essa mesma complexidade que dá a Salomé um interesse à parte, tirando-o, por assim dizer, do nicho e, potencialmente, podendo atingir públicos fora da bolha. Afinal, fala de muitas coisas, mas em especial do desejo - e este diz respeito e é um enigma para todo mundo, independente da orientação sexual. A psicanálise, por exemplo, vive dele. Como dizia Oscar Wilde: "O mistério do amor é maior que o mistério da morte." 

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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