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Opinião|Democracia em preto e branco

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Havia um clima de torcida ontem no Cine Livraria Cultura 1 para a exibição de Democracia em Preto e Branco, de Pedro Asbeg, no festival É Tudo Verdade. Não sem motivo. O filme fala da Democracia Corintiana, o período mais vistoso do glorioso Timão, na época com Sócrates, Casagrande, Zenon, Zé Maria, Wladimir e tutti quanti. Um timaço.

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Claro, corintianos podem dizer que o time de Tite foi ainda mais longe, ganhando a Libertadores e o Mundial de Clubes. Não contesto. Em termos de títulos esse Corinthians recente ocupa o primeiro lugar em sua história.

Mas aquele Corinthians do início dos anos 1980 tinha um charme, uma beleza, uma magia inigualáveis. E isso vinha não apenas do time em si, mas da maneira como ele encontrou para dialogar com seu tempo e influenciá-lo. Captar esse clima é o grande trunfo desse documentário que vai muito, mas muito além, do mero registro clubístico, daqueles feitos unicamente para desfrute das torcidas. Interessa a todos nós que, corintianos ou não, nos interessamos pelo país e sua história.

Na sessão do Cine Livraria Cultura havia muitos torcedores, e vestidos com a camisa do time. Dos antigos jogadores, vi Zé Maria e Zenon. Estavam lá os jornalistas Juca Kfouri e José Trajano, ambos da ESPN, que coproduz o longa. Lá estava o escritor e cronista do Estado Marcelo Rubens Paiva. E também o publicitário Washington Olivetto, que, como se sabe, bolou o slogan que celebrizou o time.

Asbeg trabalha sabiamente com cenas de arquivo, mostrando jogos, gols, conquistas, mas também os bastidores do elenco. Mescla essas imagens a entrevistas feitas para o filme - a mais emocionante delas, claro, com o Dr. Sócrates, emblema maior daquele time e que o comenta com lucidez distanciada, talvez pouco tempo antes de morrer.

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Mas a grande sacada, sem dúvida, é articular os feitos de um clube de futebol a um contexto muito específico, o da luta final contra a ditadura e a campanha pelas eleições Diretas. Num Brasil já farto de opressão um time de futebol propunha um respiro de modernidade e rebeldia inusitado em domínio tão conservador como o futebol brasileiro. Os atletas decidiam tudo em seu coletivo, dos treinos à concentração, passando pela contratação de outros jogadores (só parecem não ter opinado na vinda do goleiro Leão que, egoico e autoritário, era um ponto fora da curva naquele grupo).

Mas, enfim, havia a rebeldia lúcida de Sócrates, a irreverência roqueira de Casagrande, então com 19 anos, a seriedade de Zé Maria, a presença forte de Vladimir. E um comandante que enxergava além do óbvio, o diretor de futebol Adilson Monteiro Alves.

Quem viveu a época, lembra: o Corinthians era uma exceção de leveza e modernidade em meio a um país dominado por gente careta. Independente de nossos clubes de coração, éramos todos simpáticos ao Corinthians nessa época. Cada tempo se apropria de ícones como de porta-vozes de expectativas e o Corinthians foi o único time de futebol a servir de modelo a quem já não suportava mais a presença de militares no comando da Nação. Por articular tão bem os aspectos futebolísticos e sociais, e fazê-lo de forma viva, leve, musicalmente bem ritmada e agradável, Democracia em Preto e Branco se presta mais a emoções cívicas do que apenas futebolísticas.

O filme é ainda cheio de curiosidades. Naquela época os jogadores, pelo menos alguns, diziam o que lhes vinha à cabeça e não o que mandavam assessores de imprensa. Fumavam no ônibus do clube e na concentração. Iam a shows, bebiam, falavam com as pessoas. Não eram seres anódinos e extraterrestres. E, sim, eram cidadãos brasileiros e não alienados habitantes do Primeiro Mundo que, quando se dignam a vir aqui jogar estranham o clima e trazem água mineral dos seus países. Aqueles jogadores eram gente de carne e osso.

A música do tempo em que a ditadura estava acabando era o rock, pelo menos no enfoque do filme. E, sim, no começo dos anos 1980, os roqueiros ainda não faziam o jogo da direita. Tinham alma libertária e não se rebaixavam a bajular o obscurantismo. Mudaram os tempos, o futebol, os jogadores e os próprios músicos. Mas naquela época de contestação eles explodiam de vida e brilhavam.

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Entre todas, nenhuma figura se destaca mais do que Sócrates, a grande cabeça pensante daquilo tudo, o melhor jogador, o mais carismático, o mais inteligente e ousado.

Faz muita falta o Doutor.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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