Seria melhor que alguns beijos nunca tivessem acontecidos. Beijos acontecem? Seria melhor se alguns beijos nunca tivessem sido dados. Que a vida continuasse sem eles. Pois impuseram transformações excessivas. Estava tudo “índio” bem. Por que beijei?
Era um sonho matinal. Por alguma razão, talvez a luz da manhã, talvez as oito horas já de sono rolando, o sonho matinal é mais nítido e o lembrado, daqueles que se o sujeito faz terapia precisa ser anotado assim que interrompido, num diário preenchido por narrativas obsoletas e absurdas a serem debatidas com um terapeuta, tipo “sonhei que estava passando um fax para a minha avó”. Nem existe mais fax nem nenhuma das avós. Querer o impossível não é bom...
O sonho matinal é aquele sobre o qual dá para refletir, lembrar detalhes e, dependendo da narrativa, fechar os olhos e tentar retornar ao episódio interrompido. Poucos conseguem. Sonhos matinais têm mais luz. Por isso, são mais próximos da realidade. Em muitos sonhos matinais nem sacamos que estamos sonhando.
Ele sonhava um sonho banal. Sonhava que ia em busca de um PF pelo bairro. Não um agente do Estado, mas um prato-feito. Em várias casinhas, ele é vendido. Em garagens que viram restaurantes rápidos. Servem apenas almoço. Ou carne de panela com arroz-feijão e salada, que nada mais é do que um alface e rodelas de tomate, o que prova o absoluto desprezo por fibras de montadores de PFs. Por vezes, batata frita ou cozida. E farofa. Sempre o arroz-feijão é fantástico e incomparável. Por vezes, a farofa se destaca. Já sabia de cor o gosto dos PFs ao redor. E torcia para não ter comida em casa, para apelar para eles eventualmente. Sabia que não podia viver de PF, devido ao excesso de sódio e gordura neles.
Sonhava que estava para entrar num PF de uma casa laranja germinada da Pompeia, quando chegou um SUV preto blindado. Um helicóptero aterrissou na varanda. Desceu Carolina Dieckmann. Do carro, sua entourage. Perguntaram do PF local. Ele fez as honras do bairro. Detalhou a Carolina, ou Carol, como a chamam, o melhor do dia.
Que honra todo este povo aqui na Pompeia num Prato-Feito com um bom músculo de panela, apesar da batata oleosa demais. Carol foi simpática. Entraram e almoçaram. Sempre quando eles se olhavam, ela era simpática demais. Parece tanto uma garota dourada feliz e saudável. Conhecia por fotos aqueles olhos com malícia, cabelos loiros charmosamente despenteados, aquelas pintas no ombro, na clavícula esquerda, no peito...
Já nos corredores do casebre, começaram a se beijar. Sim, era daqueles sonhos em que temos intimidades com celebridades que admiramos. Beijo bom, beijo molhado. Beijo com tesão, mas com paixão; tesão fruto de paixão.
Como o tempo e a cronologia num sonho seguem as leis de Einstein (o tempo é curvo e se pode voltar ao passado), em seguida já estavam apaixonados, em seguida já viajavam num ônibus de turnê de banda de rock que ele alugara para a ocasião, sem banda ou turnê. Apenas os dois viajavam, sem entourage, apaixonados, sem pararem de se beijar, por estradas vicinais. Conheceriam o Brasil.
Aos poucos baixou o desespero dos apaixonados. Dio mio, terei que sempre alugar este gigante das estradas para viajar com ela? Terei que levá-la de helicóptero a restaurantes, bares, boates? Terá que ser o melhor amante, ter o melhor champanhe, o melhor hotel, com varanda para a melhor vista, a melhor casa de praia, ingresso para a melhor boate de Nova York, Londres, ali, sempre embarcando em Executivas? Não poderei engordar, ter uma intoxicação, uma espinha no nariz, falhar no ato sexual! Terei que acordar antes e dormir depois, se quiser estar sempre disponível. Braços torneados, barriga tanquinho, bunda firme, peitoral delineado. Terei que pedir empréstimos, vender bens, para satisfazer o luxo e conforto que uma estrela como ela requer. Por que não apareceu a Cleo Pires num Uber. Com a Cleo meus transtornos seriam menores. Loiras são mais exigentes. São?
Ele estava rolando com a Carol aos beijos e agarros pelo chão do busão estilo turnê de dupla caipira, ou melhor, de sertanejo universitário, ou melhor, pós-graduado. Sua mulher o acordou, para dizer que o táxi chegara. Ele pediu mais dez minutinhos. Estou sonhando com a Carolina Dieckmann, disse. A mulher fez um ar entediado. Vou dar de mamar e já volto.
Fechou os olhos, quase conseguiu voltar ao sonho. Mas na verdade ele se transformava num sonho erótico tenso, com muitas expectativas. Ele se transformava num pesadelo. Acordou de vez. Aquele sonho estava uma delícia, e estava estressando. Acordou e anotou no diário: “Não pedir aumento”.
Ao ir embora, sua mulher veio se despedir, com um dos filhos no peito. Sabe que você lembra a Carolina Dieckmann. Foi trabalhar. Torcendo para ninguém aparecer de SUV blindado ou helicóptero nos seus pés-sujos.