O anúncio da aposentadoria de DAVID LETTERMAN deu um nó na minha cabeça.
O anúncio dominou ontem as redes sociais.
E garanto que muita gente foi para a cama e sentiu já nostalgia e um certo vazio.
Sem ele todas as noites, há 33 anos, comandando o LATE SHOW que diverte, informa, ironiza e retrata o sabor da América, uma solidão grande passará a nos fazer companhia.
LETTERMAN era sarcástico, mas era o bom senso.
Muitas vezes, precisávamos do seu programa para opinarmos sobre algo ou justificarmos a nossa indignação.
Assisti por anos seu show, dica ainda no final dos anos 1980 do Marcelo TAS, que me contou de um programa americano em que o entrevistado falava sem rodeios aquilo que queríamos dizer.
Aprendi inglês assistindo-o ainda na NBC.
Nunca vi cometer uma grosseria com algum convidado.
E olha que praticava o humor que passeia no fio da navalha, no limite do grotesco.
Sua grande esperteza é que se fazia de ignorante curioso, gente boa e bobão, um estereótipo do americano comum.
Mas de bobo e ignorante, ele não tinha nada.
Via todos os filmes dos atores que iria entrevistar, lia os livros, sabia o que acontecia nos bastidores do Poder, zoava de Putin ao Papa de uma maneira que ambos cairiam na gargalhada.
Seu alvo preferido durante anos foi o atrapalhado e colecionador de gafes, George W Bush.
Reclamou que Obama não inspirava piadas, o que virou piada.
Muitas vezes, ele próprio, "Uncle David", era a piada do programa.
Fumava escondido das câmeras. Tomava uns goles extras.
Sua mãe, uma simpática velhinha de Indiana, aparecia em links para passar receitas de biscoitos ou falar de trivialidades.
O dono da Deli da esquina no teatro na Broadway, em que se gravava o show, um asiático americanizado, aparecia sempre para falar de temas de interesse geopolíticos.
Ele dava voz ao povo.
Os técnicos de estúdio ganharam quadros. Os roteiristas, até estagiários, apareciam e interviam.
Aliás, por traz do sucesso do programa, estava a numerosa equipe de roteiristas que bolava quadros, piadas, em 33 anos, inovando a cada semana o show.
LETTERMAN era Nova York, a capital do mundo.
Bandas indies tomavam de assalto o seu programa.
Está tudo no Youtube: Radiohead em começo de carreira, Queen of Stone Age que, ineditamente, tocou em dois programas seguidos.
Algumas atrizes apareciam mais provocantes e sexy em seus programas como uma piada, exatamente para ironizar a sua fama de galinha, constranger o apresentador e, lógico, a audiência.
Aliás, uma das atitudes mais dignas e corajosas, ele tomou ao vivo:
Quando começou a ser chantageado por um produtor, que queria dinheiro para não revelar que o apresentador, então casado, tinha um caso com uma estagiária, Letterman anunciou que estava sendo chantageado, pediu desculpas à mulher, e o idiota foi preso.
Triste demais a sua aposentadoria.
Dificilmente encontrará substituto.
Perdemos todos.