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Daniel Murray e Ana de Oliveira lançam dois dos melhores discos recentes no Brasil

A ex-violinista da Orquestra Experimental mescla o que aprendeu na Europa ao som do Brasil e o violonista mergulha em ritmos como frevo, maracatu, valsa e ciranda

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Por João Marcos Coelho

“Sinto o ar de outros planetas”. Este é o primeiro verso do poema de Stefan George que Arnold Schoenberg escolheu para uma soprano cantar no último movimento de seu segundo quarteto de cordas, em 1908. Com isso, queria marcar uma ruptura, ou melhor, mostrar musicalmente a epifania que o levava a ouvir sons até então inéditos. A música tonal se desmanchava naquele momento. Este verso me veio à cabeça enquanto ouvia e reouvia dois álbuns recém-lançados. Senti neles ares de outros planetas. 

O violonista Daniel Murray Foto: Arquivo pessoal

Ninguém sai incólume de encontros com personalidades fortíssimas. De certo modo, é o que compartilham estes dois músicos excepcionais. De um lado, o violonista carioca Daniel Murray que, neste ano, chega aos 40 anos. Ele transformou em realidade sua paixão essencial pela música em São Paulo. De outro, a violinista Ana de Oliveira, paulistana que pulou da Orquestra Experimental para a Europa, e de volta fez do Rio de Janeiro o centro de sua vida.  Ambos lançaram há pouco álbuns extraordinários, cada um a seu jeito. Ana devolve como música originalíssima tudo que apreendeu, da Europa mas sobretudo do Brasil profundo, no álbum Dragão dos Olhos Amarelos, uma viagem solo que ora finca pé na música armorial, ora na música europeia mais enraizada. Vai de Bach a Bartók, do dodecafonismo de Schoenberg à arte de um movimento de sonata solo, significativamente intitulado Malincolia, assinado pelo belga Eugene Ysäye, um dos maiores violinistas das primeiras décadas do século 20. Tudo regado a dois encontros artísticos fatais: com Hermeto e com Egberto Gismonti. Parece mas não é hermético. Basta transpor o umbral da preguiça e ter ouvidos para ouvir. Em algum lugar Ana diz que nele fez uma “catarse”. Sim, uma épica viagem para dentro de si mesma e de todo o mundo musical do qual ela se alimentou para construir uma personalidade muito forte. Não por acaso, seu subtítulo é Improvisos autobiográficos. Sintomático que este álbum solo aconteça logo depois de uma incrível aventura armorialística de 2019, levada a cabo com o parceiro Sérgio Ferraz: Cartas de Amor e Outras Histórias é destes CDs que já nasceram clássicos. Antes de ouvir o Dragão dos Olhos Amarelos, dê uma passadinha nestas cartas preciosas. Ouça mais de uma vez a Suíte Armorial, encorpada peça em quatro movimentos de Sérgio Ferraz.  Improvisar de modo livre, sem receitas, mas ao mesmo tempo mantendo um nível de invenção rigoroso, é algo quase impossível para músicos eruditos convencionais. E uma das razões é que eles aprendem música segundo manuais europeus ou norte-americanos. E acabam comprando inverdades, como, por exemplo, a de que Copland é o grande compositor das Américas depois de Villa-Lobos. Quem sabe das coisas tem outro nome na ponta da língua: Camargo Guarnieri.  Fiz de propósito este desvio no texto pra chamar a atenção para outro feito expressivo de Ana. Se você por acaso for estudante de violino, terá a chance inédita de se aperfeiçoar artística e tecnicamente no instrumento por meio de um livro inédito que Ana está lançando: O violino na música contemporânea brasileira. Agora existe um livro que usa exemplos de música brasileira para ensinar tanto a música mais convencional quanto as técnicas estendidas, um golaço pedagógico de Ana de Oliveira. Detalhe: disco e livro se viabilizaram por financiamento coletivo via internet. Em tempo: Ana gravou no Estúdio Monteverdi, de André Mehmari. E não escapou de um terceiro encontro fatal: Posso Chorar, composição de Hermeto dedicada à Ana, em linda versão para violino e piano. Golaço triplo é o que conquistou Daniel Murray com Sombranágua – Septeto Autoral. Além do álbum, ele disponibiliza todas as partituras dos arranjos e das peças solo, assim como três aulas e uma apresentação do repertório, disponíveis no Youtube.  É sua aventura mais ousada até agora, numa carreira super vitoriosa, já com pés fincados internacionalmente. Murray vem “crescendo” aceleradamente do ponto de vista artístico. O encontro, aqui, não é uma viagem para dentro de si, como a de Ana, mas uma ampliação de horizontes significativa. Em Sombranágua, ele compôs todas as músicas e assina os arranjos. Reuniu um time de bambas, como o violinista Luizinho Amato, o percussionista Caito Marcondes, o contrabaixista Pedro Gadelha, a flautista Sarah Hornsby, a violoncelista Adriana Holtz e o clarinetista Gustavo Barbosa-Lima, Parece grupo de câmara. E na verdade é. Graças à inteligente percussão minimalista de Marcondes, mergulham fundo em ritmos como frevo, maracatu, valsa e ciranda. Arranjos precisos, sob os olhares atentos do mestre de Daniel, Paulo Bellinati.  Ana e Daniel, dois itinerários marcados pelo encantamento com o Brasil visceral. Caminhos raros hoje em dia. Aliás, como cantava Elis os versos de Aldir Blanc: “O Brazil não conhece o Brasil”.

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