Que país é esse que aparece nas listas de mais tocadas de 2024? Seja nos serviços de streaming ou nas rádios, o quadro pintado pelos rankings de músicas mais executadas do Brasil mostra pouquíssima diversidade. Há mais de uma década, existe um gênero hegemônico que, apesar de algumas oscilações, parece deixar cada vez menos espaço para os outros. E não é só no topo das paradas, não: é uma monocultura que se estende até as faixas que ocupam o 50º lugar — no caso das mais tocadas em rádios, vai até a 100º colocada.
Na terça-feira, 14, a Pro-Música, entidade que representa as principais gravadoras e produtoras fonográficas do Brasil, divulgou a relação com as 50 músicas mais acessadas nas plataformas de streaming no Brasil em 2024. O levantamento combina dados de todas as principais plataformas de streaming no Brasil – Spotify, YouTube, Deezer, Apple Music, Amazon Music e Napster.
Os primeiros lugares do ranking ficaram assim:
- Gosta De Rua (Ao Vivo), com dupla Felipe & Rodrigo
- Me Leva Pra Casa/ Escrito Nas Estrelas/ Saudade de Mim (Ao Vivo), com Lauana Prado
- Barulho Do Foguete (Ao Vivo), com Zé Neto & Cristiano

É o sétimo ano consecutivo em que a lista é liderada por gravações de sertanejo (quase sempre ao vivo). Desde 2018, não tem parada:
- 2018: Propaganda (Ao Vivo), de Jorge & Mateus
- 2019: Lençol Dobrado, de João Gustavo & Murilo
- 2020: Liberdade Provisória (Ao Vivo), de Henrique & Juliano
- 2021: Batom de Cereja (Ao Vivo), de Israel & Rodolffo
- 2022: Mal Feito (Ao Vivo), de Hugo & Guilherme e Marília Mendonça
- 2023: Leão, de Marília Mendonça
Entre as 50 músicas mais tocadas no streaming brasileiro em 2024, 30 podem ser classificadas como sertanejo ou envolvem artistas vinculados ao gênero. Nenhum medalhão da MPB tradicional aparece no top 50 divulgado pela Pro-Música; a chamada nova MPB de nomes como Anavitória, Jão e Liniker também está invisível nessa parte das listagens. Nada de axé. Rock ou samba tradicional? Nem pensar. Seu Jorge surge na 11ª posição, a reboque do DJ Topo, jovem produtor paulista que pegou uma música lançada pelo cantor em 2011, Quem Não Quer Sou Eu, junto com um sample do funk mineiro Maldita de Ex, de MC Leozin, e trabalhou em um remix minimalista ao estilo MTG (montagem) que tem movimentado a cena de Belo Horizonte.
No dia 1º de janeiro, a Crowley, multinacional que há 28 anos atua no Brasil monitorando transmissões, divulgou o relatório com as 100 músicas mais executadas nas rádios do país. Relação Errada, de Gusttavo Lima com participação de Bruno & Marrone, foi a campeã; o cantor e empresário mineiro ainda emplacou outra no top 10: A Noite (versão de La Notte, do italiano Giuseppe Anastasi) ficou em sétimo lugar. A lista foi elaborada a partir dos dados aferidos em cerca de 800 emissoras de grandes e médias cidades em 16 estados, de segunda a sexta-feira, entre 7h e 19h. Das 100 mais tocadas, 87 são de artistas sertanejos. O primeiro nome fora desse universo a surgir, no 44º lugar, é o do grupo paulistano Pixote, com Mania Boba - Ao Vivo.
Na segunda metade da tabela, outras 12 gravações conseguem furar o bloqueio da monocultura do som agro, quase todas de pagode, puxadas por outras duas contribuições do Pixote e mais hits de Sorriso Maroto, Thiaguinho, Ferrugem e Péricles. A eclética Glória Groove aparece em 90º lugar, com Nosso Primeiro Beijo. Como exotismo maior na lista, na confluência pop entre forró e reggae, surge em 85º Me Ama (Ao Vivo), do Falamansa com participação do grupo Maneva. Nada de MPB, nova ou velha.
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Há duas décadas, o cenário era diferente
Há 20 anos, a Crowley registrava entre as 100 mais tocadas de 2004 nas rádios (então, o principal meio de consumo de música) um cenário bem diferente: 24 eram gravações estrangeiras, 17 podiam ser classificadas como rock ou pop/rock, 16 eram sertanejos e 13 pertencentes ao nicho samba/pagode — da MPB, apenas duas representantes. Há 15 anos, em 2009, o cenário era semelhante, mas com um domínio bem maior da música estrangeira: 50%. Em 2013, porém, vem a virada e, pela primeira vez, o sertanejo aparece como estilo mais tocado nas aferições da Crowley em rádios brasileiras: no top 100, liderado por Vidro Fumê, de Bruno & Marrone, 57 gravações são do gênero. A partir daí, esse domínio cresceu, atingindo um pico de 87% dos hits em 2017, consolidando uma hegemonia que parece ser inabalável.
No levantamento da Pro-Música, único que combina dados de todas as principais plataformas de streaming no Brasil, o domínio é semelhante, mas há algum espaço para os chamados gêneros “urbanos” (funk, trap e hip-hop). Em seu top 10 constam sete gravações de artistas sertanejos. As exceções são, em quarto lugar, The Box Medley Funk 2, do projeto all-star The Box em sua faceta funkeira, com Mc Brinquedo, Mc Cebezinho, Mc Tuto & Mc Laranjinha, e, em sétimo, Let’s Go 4 (feat. Mc Davi, McDon Juan, MC Kadu, MC GH Do 7, MC GP & TrapLaudo)”, com Mc IG, MC PH, MC Ryan SP & MC Luki, uma junta com 11 nomes do funk/trap se espalhando por mais de 10 minutos de cypher (como são chamadas no hip hop certas reuniões de rimadores em formato livre, de jam). Em nono lugar, Lapada Dela (Ao vivo), é um hibridismo em que o grupo de pagode Menos é Mais se junta ao cearense Matheus Fernandes, acostumado a trabalhar com elementos de forró, eletrônico e... sertanejo.

Na listagem divulgada pelo Spotify no começo de dezembro do ano passado, a dupla Henrique e Juliano aparece como artista mais ouvido do país, com Ana Castela em terceiro lugar. Mas três dos nomes do top 5 são ligados ao funk: MC Ryan (segundo colocado), Mc IG (quarto) e MC PH (quinto). Esse equilíbrio, no entanto, não se confirma na lista com dados consolidados da Pro-Música.
Presente no Brasil há dez anos, o Spotify inicialmente era bastante usado para o consumo de música estrangeira, provavelmente pelo perfil socioeconômico de seus usuários “pioneiros”. Hoje, mais popular e abrangente, o serviço distribui predominantemente gravações de produção nacional (cerca de 60%). Há uma manifesta preocupação da empresa em divulgar trap, funk, pop e forró/piseiro, e suas playlists editoriais como Esquenta Sertanejo e Pagodeira são reconhecidas como alavancas fundamentais para o sucesso de uma faixa.
A culpa não é só do algoritmo

Seja nas rádios ou no streaming, os rankings de 2024 apontam para um mercado musical brasileiro onde nem mesmo os mega hits estrangeiros conseguem concorrer com os sucessos brasileiros. No levantamento da Crowley, as 100 gravações mais tocadas são nacionais. Na relação da Pro-Música, apenas duas são de artistas internacionais, ambas longe do top 10: a power balada Beautiful Things, do americano Benson Boone, que aparece em 46º lugar, e Die With A Smile, dueto pop de Lady Gaga com Bruno Mars, a 50ª da lista. Não tem Taylor Swift.
Outro fator em comum é o predomínio das músicas em versões ao vivo, gravadas para “álbuns audiovisuais”, sucessores dos hoje semiobsoletos DVDs (formato que foi arrimo da indústria fonográfica brasileira durante boa parte da década passada). Nas rádios, 76 das faixas do Top 100 de 2024 são gravações ao vivo — 6 a mais do que na listagem de 2023. No ranking da Pro-Música, somam 26 das 50 mais tocadas.
Não é de se estranhar que um exame nas duas listas (de Pro-Música e Crowley) deixe muitos leitores com a sensação de habitar outro país, outro universo aural, sem reconhecer grande parte do que consome em playlists ou shows. Onde estão certos artistas que lotam arenas por todo o Brasil? Por que um hit aparentemente massivo como Macetando, de Ivete Sangalo, com participação de Ludmilla, não aparece no top 50? Como é que a música pop internacional, que gera tantos megashows e festivais lucrativos por aqui, fica quase invisível?
Tal perplexidade remete à realidade culturalmente fragmentada dos anos 2020. Não se trata de culpar o algoritmo, suspeito de sempre desde que virou top influencer na indústria do sucesso. Esses rankings, afinal, parecem dizer mais sobre as estruturas da música como negócio do que como fenômeno cultural. A quem interessa essa uniformidade nas paradas? Concentrar investimentos em setores que dão mais retorno é do jogo em qualquer atividade privada. Práticas monopolistas, porém, devem ser reguladas e coibidas. De qualquer maneira, a dissociação entre esses rankings e a percepção de grande parte do público expõe um fenômeno que merece ser bem investigado — em mais de um sentido.