Erika Ribeiro, herdeira dos grandes pianistas, não cria barreiras entre o erudito e o popular

Pianista paulistana lança o disco ‘Navigator of Silences’ com a violinista americana Francesca Anderegg e fala sobre suas referências e motivações, como ‘abrir espaço para uma comunicação verdadeira com o público, e que esteja em consonância com minha identidade como artista sul-americana’

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Por João Marcos Coelho

A violinista norte-americana Francesca Anderegg e a pianista paulistana Erika Ribeiro acabam de lançar o álbum Navigator of Silences. É um projeto diferenciado, que precisa ser ouvido na íntegra porque exibe uma organicidade cada vez mais rara hoje em dia. Infelizmente estes tempos digitais do streaming banalizam o “fazer” artístico, induzem os músicos que, por sua vez pressionados pelas gravadoras, tecem saladas musicais sem pé nem cabeça pra ver se conseguem “pescar” alguma faixinha que propicie milhões de audições. Hay que monetizar.

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Os perfis artísticos de Francesca e Erika indicam que estamos diante de duas virtuoses da música dita clássica. Mas a audição de suas 15 faixas assinadas por três mulheres (Léa Freire, Bianca Gismonti e Clarice Assad) e cinco homens (Yamandu Costa, Radamés Gnattali, André Mehmari, Luca Raele e Toninho Horta) remete nossos ouvidos para paisagens diferentes e igualmente fascinantes.

Populares? Eruditas? Sim e não é a resposta para as duas perguntas. Mas não devemos nos surpreender, lembra Erika Ribeiro, aos 43 anos, indicada ao Grammy Latino em 2022 por Stravinsky + Hermeto + Gubaidulina, em entrevista ao Estadão: “Quando a gente analisa a história do piano no Brasil, encontramos nomes como Jacques Klein, Arthur Moreira Lima e Clara Sverner, só para dar alguns poucos exemplos, que são pianistas que sempre estiveram envolvidos com diversos repertórios, mesmo tendo uma inegável atuação dentro da música clássica.”

A pianista paulistana Érika Ribeiro é uma das artistas de maior destaque no instrumento no cenário brasileiro. Foto: João Atala/Divulgação

Relembrando: entre 1943 e 1946, Klein simplesmente abandonou o repertório erudito e assumiu-se como pianista de jazz, chegando a tocar em Nova York para Art Tatum, então considerado o maior gênio do piano-jazz naquele momento (Tatum gostou muito do que ouviu). Arthur Moreira Lima, que nos deixou há pouco, fez carreira brilhantíssima na Europa, mas dedicou a segunda metade de sua vida à música brasileira inclusiva, desbravando o Brasil profundo com um caminhão-palco; e a querida Clara Sverner foi uma pioneira ao sair do cercadinho erudito e “ocupar” o inexplorado território erudito-popular brasileiro).

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Legítima herdeira destes gigantes do piano brasileiro, Erika completa que “o Brasil abre essa porta para a gente, de estar atuando no clássico mas ao mesmo tempo poder se aventurar musicalmente em outros territórios. Aliás, essa segmentação do pianista ‘clássico’ e do ‘popular’ nunca funcionou muito comigo”. Algo que fica muito claro quando ela alinha entre referências previsíveis (Nelson Freire, Martha Argerich, Maria João Pires) outras inesperadas e muito bem-vindas (Brad Mehldau, Keitth Jarrett, Bill Evans... e Art Tatum, o gênio negro do piano-jazz dos anos 1940/50 que saudou Jacques Klein brilhando no seu território).

“Nunca achei que deveria escolher um lado, mas sempre perseguir uma sonoridade que fizesse sentido, da qual me sinta parte, e onde imagino que possa contribuir, abrindo espaço para uma comunicação verdadeira com o público, e que esteja em consonância com minha identidade como artista sul-americana.”

Em busca da imagem sonora

Não por acaso, Francesca é casada com o compositor venezuelano Reinaldo Moya, daí a interação mágica entre seu violino e o piano de Erika. Elas gravaram, em 2018, o álbum Images of Brazil, na série Latin Classics da Naxos, com obras de Villa-Lobos (a deliciosa Martírio dos Insetos), a quarta sonata de Guarnieri, peças de Guerra-Peixe e Ernani Aguiar; sem esquecer o lado mais popular, inaugurado em grande estilo, com peças de Léa Freire, Villani-Cortes e a antológica Flor da Noite de Radamés Gnattali.

Em 2021, durante a pandemia, Erika lançou seu primeiro álbum solo, com obras de dois russos (Igor Stravinsky e Sofia Gubaidulina, hoje com 93 anos) e de Hermeto. Interpretações admiráveis de obras igualmente admiráveis, como o ciclo Brinquedos Musicais, de Gubaidulina.

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Ainda na pandemia, em 2022, a residência de Francesca e Erika com o Silkroad Ensemble idealizado por Yo-Yo Ma, em Boston, confirmou de modo absoluto um sentimento que ambas já possuíam no seu DNA, conta a pianista, hoje radicada no Rio de Janeiro: “Abriu muito nossas cabeças no intuito de podermos assumir papéis mais criativos, incluindo a improvisação, arranjos e composição, para além daquele do performer clássico tradicional.”

De fato, os músicos clássicos aprendem desde a meninice que a obra de arte musical está inteira na partitura, cabe ao intérprete ser o mais fiel possível a ela e aos desígnios do compositor. Os músicos e pianistas citados por Erika como seus preferidos não têm a postura de cães de guarda do que está na partitura, abrem espaço para o intérprete. Pois, afinal, a música nasce e se afirma no momento em que está sendo executada, e neste gesto o intérprete tem todo direito de expressar musicalmente como entende o que está escrito no pentagrama.

A pianista Érika Ribeiro lança o disco ‘Navigator of Silences’ com a norte-americana Francesca Anderegg. Foto: João Atala/Divulgação

Neste sentido, em que medida ela “modifica”, ou melhor, reinventa a partitura no momento da execução? “A partitura é o grande instrumento da música clássica, no sentido de que quanto mais você se aprofunda, mais consegue se utilizar dos muitos parâmetros que ela oferece. Isso que você comentou acontece comigo de modo relativo ao estilo em que estou mergulhada. Se estou tocando Beethoven, o texto musical assume um papel diferente do que em Villa-Lobos, por exemplo, onde faz parte incorporar outras sonoridades e intenções não-grafadas. Um conceito muito bonito da escola russa de piano (citado por pianistas como Neumann e Feinberg), sintetiza o que busco em minha maneira de tocar: a imagem sonora. Basicamente, você só sabe de verdade o que é a música quando ela soa completamente em sua mente. Ou seja, é muito mais uma relação de como você escuta o ‘texto’ internamente, do que em apenas seguir regras de estilo”.

É a partir de reflexões deste tipo que se entende melhor por que o suingado Samba pro Rapha, francamente popular de Yamandu Costa, soa tão “adequado” quanto o Choro na Chuva de Lea Freire, que frequenta paisagens praticamente eruditas, apesar do “Choro” do título. Outro detalhe importante: no samba se reinventa o violão de Yamandu, potente, agressivo, maravilhoso invasor de todos os espaços, assim como o choro absorve a leveza da flauta de Léa Freire.

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Última confissão da pianista ao Estadão: “E aí para mim entra um campo que adoro estudar, que é a história dos intérpretes. A gente acessa emocionalmente a música através do humano, de forma que o intérprete está intimamente ligado à composição. Para mim ele dá forma a ela não como coadjuvante, mas como cocriador. A partir disso, escolhemos peças onde pudéssemos desenvolver esses aspectos, ampliando a atuação do duo.”

Daí a presença de Mehmari, Lea, Raele, Bianca e Clarice. “Todos partem do princípio de que o intérprete possui essa autonomia, algo presente também no próprio Radamés Gnattali e tantos outros brasileiros. Enxergamos essa linhagem e quisemos apresentá-la no álbum.”

O arranjo elegíaco de Luca Raele para piano solo de Beijo Partido, obra-prima de Toninho Horta, sucesso planetário na voz de Milton Nascimento, é emocionante. Como o piano de Erika “fala”. É assim que o intérprete transforma-se de fato em “cocriador”.

Ouça Samba pro Rapha (Yamandu Costa)

Ouça Choro na Chuva (Léa Freire)

Ouça Beijo Partido (Toninho Horta)

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