São Paulo foi a primeira cidade a compreender e difundir a bossa nova, revelou João Gilberto no seu show de sexta-feira no Tom Brasil, na Vila Olímpia. Ele contou que Chega de Saudade, single gravado em 1958, só veio acontecer como fenômeno musical um ano depois de seu lançamento. E o reconhecimento deu-se pela acolhida que teve em São Paulo. "Não fosse por isso, eu estaria morto", disse o cantor. Por conta disso, o músico cantou duas vezes Chega de Saudade (Tom e Vinicius) no seu concerto, também como uma manobra diplomática com o público, já que pediu o acompanhamento do coral da platéia na segunda interpretação. E também cantou outras duas vezes Eclipse (Ernesto Lecuona). Entrando no palco com 45 minutos de atraso, João Gilberto fez um dos concertos mais perfeitos de sua carreira, no qual reclamou pouco do som e tocou com maestria um punhado de clássicos (28 músicas ao todo). Entre elas, Que reste?t?il de nos amour, de Charles Trenet, além de Saudosa Maloca (Adoniran Barbosa), O Pato (Jaime Silva e Neusa Teixeira), Desafinado (Tom Jobim e Newton Mendonça), Estate (Bruno Martino e Bruno Brighetti), Guacyra (Heckel Tavares e Joracy Camargo), Coração Vagabundo (Caetano Veloso), Eu Vim da Bahia (Gilberto Gil), Carnaval da Vitória (Nelson Ferreira e Sebastião Lopes), Pra Que Discutir com Madame (Janet Almeida e Haroldo Barbosa), Curare (Bororó), e muito Tom Jobim (Lígia, Wave, Caminhos Cruzados, Retrato em Branco e Preto, Chega de Saudade e Corcovado). Mas o cantor não foi só pródigo em repertório. Também aproveitou para comentar as críticas mais comuns ao seu trabalho, mas sempre com humor, nada de ranhetice. "Dizem que eu canto sempre as mesmas músicas velhas", afirmou. "Mas as notas são mais velhas que as músicas, e são sempre as mesmas notas", alfinetou, lembrando que Frank Sinatra cantava todo o tempo Cheek to Cheek e isso era visto com naturalidade. Também brincou improvisando sobre a letra de Eclipse, quando a estava repetindo, e fez um comentário sobre o fato de ser um compositor de poucas canções. "Para quem quer sempre coisa nova", divertiu-se, e foi cantarolando: "Essa eu já cantei, mas não faz mal. Já cantei, mas não faz mal". Como de hábito, João Gilberto também aderiu às provocações da platéia, como a de um fã mais entusiasmado que saudava cada canção com uma ovação diferente. Quando João cantou Estate, cuja letra é em italiano, o admirador gritou: "Molto bene!". Quando cantou Que reste?t?il de nous amour, em francês, o fã soltou: "Très bien!". Quando cantou Eclipse, recebeu um "Muy bien". Há um pouco de amolação nesse rito com a platéia, por que alguns exageram, parecem à beira de orgamos de novela quando ele entona os primeiros acordes das canções mais conhecidas. "Você tá demais, hein, João?", dizia um. "Quanto mais velho melhor", dizia outro. Mas João Gilberto Prado Pereira de Oliveira estava com um bom humor inesgotável. Para começar, disse que um médico seu amigo recomendara que não reclamasse mais do som. Mais adiante, quando notou que o microfone estava muito baixo, simulou cantar como se estivesse caindo. Quando anunciou que ia cantar de novo Chega de Saudade, reclamou que a platéia não o tinha acompanhado da primeira vez e que era preciso "manter a tradição". E ele também sabe quando discordar dos bajuladores. Balançou a cabeça fazendo pouco caso quando o chamaram de "imortal" e respondeu ao exaltado que disse que São Paulo era a locomotiva do Brasil. "Não gosto dessa coisa de locomotiva". Óbvio. Porque a imagem acelerada e ruidosa (e também ufanista e bairrista) de uma locomotiva é tudo que não combina com o som de João Gilberto. O espectador fica até com receio do ruído que fará sua garganta ao engolir um pouco de água, no momento em que ele desfia algumas de suas sutilezas. Como na bela Izaura, de Herivelto Martins, um dos destaques da noitada: "Ô Izaura me desculpe, no domingo eu vou voltar/ Seu carinho é muito bom, Ninguém pode contestar/ Se você quiser eu fico, Mas vai me prejudicar/ Eu vou trabalhar". Mas é nas pequenas surpresas que incorpora ao repertório mais conhecido que ele mostra seu faro. Ignorando os pedidos de Sampa, Sampa, Sampa, o cantor começou a dedilhar Carnaval da Vitória, de Nelson Ferreira e Sebastião Lopes, um frevo de bloco de 1958 ? o ano em que ele, Jobim, Vinicius e Elizeth detonaram a bossa pelo mundo. Pouco antes do show começar, a voz nos alto-falantes já indicava que aquela não seria uma noite comum. "Informamos aos senhores espectadores que, a pedido do artista, será desligado o ar condicionado". Deu um certo calorão, mas valeu a pena.