Diz-se, nas boas rodas, que Nelson Sargento tem o dom da ubiqüidade. Está, sempre, em toda parte. Aquela mesa de samba e choro em Niterói (RJ). Uma feijoada num boteco suburbano. Uma premiação de cinema em Brasília ou Gramado. Madrugada longa de música boa e - de repente - aparece Nelson Sargento. Ubíquo não é. Ativo, isso sim. De múltiplas atividades, sempre. Já havia sido autor de samba campeão da Mangueira (Cântico à Natureza - As Quatro Estações do Ano, parceria com Jamelão e Alfredo Português, em 1955) e continuava pintor de parede. Pintava parede, nos anos 60, quando Elton Medeiros e Hermínio Bello de Carvalho subiram o Morro da Mangueira em busca de um violão que completasse o instrumental do conjunto Os Quatro Crioulos. Conta Hermíno como o viu - e não o conhecia: "Quase que encarapitado numa pirambeira, o barraco dele refletia a sua modéstia. Operário das tintas, ganhava a vida colorindo paredes, entre soberbas talagadas de cerveja e uma branquinha de quando em vez, sendo ele o de quando em vez." O grupo passou a chamar-se Os Cinco Crioulos, Nelson incorporado. E foi assim que o público começou a conhecer o sambista de quadra, homem da comunidade, compositor da escola, nascido Nelson Mattos, apelidado para sempre Sargento, depois que deu baixa no Exército. A mãe era empregada doméstica, trabalhando na casa de comerciantes atacadistas portugueses, na Tijuca, onde Nelson passou a infância. Na adolescência, ganhou um padrasto português - o Alfredo Português, compositor de fados e também de sambas, pintor de paredes, a quem ajudou no ofício que adotaria como seu. Mudou-se para a Mangueira, entrou para a escola e, por indicação do fundador Carlos Cachaça, que morreu, centenário, recentemente, chegou a ser presidente da ala de compositores da escola. Já nos anos 40 cantavam-se nas quadras mangueirenses alguns sambas seus. Em 1948, compôs, com o padrasto, o primeiro samba-enredo para a Mangueira, Rio São Francisco. Homenagens - Já naquele tempo, os enredos homenageavam figuras públicas. Em 1950, Nelson e Alfredo fizeram a Apologia aos Mestres, sobre Miguel Couto, Osvaldo Cruz, Rui Barbosa e Ana Néri. Alfredo Português morreu, Nelson começou a compor com Carlos Marreta, de quem foi parceiro em Vai Dizer a Ela. Na década de 60 deixou de ser só - mas seria "só"? - um compositor da escola, para tornar-se conhecido do público. No início da década seguinte, Paulinho da Viola gravou Falso Moralista, no disco Dança da Solidão, Nara Leão gravou Fundo Azul. O jornalista e historiador da música do Rio Sérgio Cabral incentivou-o a pintar as cenas da boêmia do samba. Nelson participou, como ator, de O Primeiro Dia, de Walter Salles e Daniela Thomas, Nelson Sargento da Mangueira, de Estêvão Pantoja (pelo qual recebeu o Kikito de Ouro de melhor trilha sonora, em Gramado), Orfeu do Carnaval, de Cacá Diegues, do curta Perdi a Cabeça na Linha do Trem e até de novelas - a última participação foi em Presença de Anita, da TV Globo. Escreveu, a oito mãos com Alice Campos, Francisco Duarte e Dulcinéia Duarte, a monografia Um Certo Geraldo Pereira e iniciou, nos anos 90, carreira internacional, tendo gravado discos para o Japão (entre eles uma homenagem a Cartola, mestre e parceiro, como também foram parceiros Carlos Cachaça e Darcy da Mangueira, entre muitos). Discografia - A discografia é pequena e importantíssima. Começa com o disco do show Rosa de Ouro, passa pelos dos Cinco Crioulos; o primeiro solo foi Sonho de um Sambista, de 1979; vieram Encanto da Paisagem, de 1986, Inéditas - Nelson Sargento, de 1991, Só Cartola (com Elton Medeiros), em 1998. Participou do disco Mangueira Chegou, de 1989, e do Meninos do Rio, reunindo grandes sambistas do passado. Participou de trabalhos alheios e obras coletivas - Chico Buarque da Mangueira, Viva Noel - Tributo a Noel Rosa (de Ivan Lins), O Dono das Calçadas, homenagem a Nelson Cavaquinho que dividiu com a cantora Soraya Ravenle e o conjunto Galo Preto, e ainda de discos do Arranco de Varsóvia, do Fundo de Quintal, da cantora Daúde. Memória viva - Nelson Sargento é, ainda, uma espécie de memória viva da Mangueira. Assim como é incansável nas múltiplas atividades, parece ter a memória melhor a cada dia. Coisa que, aliás, suscita a interrogação: e as memórias, quando virão, que editor encomendará? Boa parte da história do samba está na cabeça do grande músico, e quase só nela. Flores em Vida, o disco que está lançando, é um primor, que tem produção e arranjos do grande João de Aquino e conta com participação especial de Emílio Santiago. No time de músicos, Gordinho, Marcos Esguleba (percussão), Dirceu Leite (flauta), Paulão Sete Cordas, Pedro Amorim (bandolim), Márcio de Almeida (cavaquinho), Fernando Merlino (piano) - e assim por diante, a turma da pesada. No repertório, uma coleção de obras-primas em que se podem destacar o samba-canção Quando Eu te Vejo Passar, o sacudido Menti (parceria com Pedro Amorim), o samba-quase-marcha-rancho A Mesma Fantasia. Nelson Sargento, em plena forma, gênio da raça, merece mais do que flores em vida. Ouvir o disco é saber disso. Nelson Sargento. Tarde de autógrafos do CD "Flores em Vida". Sábado, a partir das 14 horas. Pirajá. Avenida Brigadeiro Faria Lima, 64, tel. (11) 3815-6881.