Antes do coronavírus, a investigação de como os seres humanos percebem o tempo era trabalho principalmente dos psicólogos. Então, a pandemia confinou metade do planeta em suas casas, deixando a rotina de pernas para o ar e borrando os marcos dos quais dependíamos para manter nossa noção de tempo.
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Agora, ele se tornou uma obsessão. O Google registrou uma alta nas buscas pelo dia da semana. Cada período de vinte e quatro horas se arrasta aos poucos, mas abril passou rápido e maio evaporou de repente. E a natureza segue com seu cronograma, indiferente à confusão humana.
Faz tempo que a investigação da percepção do tempo é objeto de trabalho também de compositores. Pierre Boulez enxergava uma distinção entre o tempo que contamos e o que habitamos. Quando falei com o percussionista Steven Schick, ele mencionou essas duas categorias. “Uma das dificuldades do momento é o fato de termos subdesenvolvida a capacidade de simplesmente ocupar o tempo, dependendo de nossas múltiplas estratégias para contá-lo”, disse ele. “E, quando essas nos são roubadas, somos ‘desatracados’ da matriz que faz com que nos sintamos à vontade.” Desde o fim do século 19, talvez como reação à era industrial que começava, os compositores brincam com diferentes formas de criar música resistente às mecânicas humanas de contagem do tempo. Nos Estados Unidos, a apoteose desse fenômeno foi a música de Morton Feldman que, como escreveu o crítico Michael Andor Brodeur no Washington Post, observa sutis alterações no decorrer de longos períodos. Eis aqui sete obras que falam ao limbo temporal causado pela covid-19: uma lista de reprodução de músicas para os ‘desatracados’. “Aqui, o tempo se torna espaço” é verso-chave de Parsifal, de Wagner. No fim de março, a romancista italiana Francesca Melandri publicou uma carta no Guardian prevendo como seriam os desafios vividos pelos britânicos nas semanas seguintes. A Itália estava mais avançada na trajetória da pandemia, o que a fez dizer que escrevia do futuro. A ideia do futuro enquanto um país fez sentido para mim. Confinada em um apartamento de três quartos com meu marido e três filhos em idade escolar, bolei uma forma de encontrar mais espaço: poderia acordar bem cedo pela manhã, antes de todo mundo. O tempo se tornou espaço. Durante centenas de anos, os compositores ocidentais usaram os compassos para subdividir uma obra musical. Visualmente, a técnica ajuda os músicos a se situarem no que poderia ser um fluxo escorregadio de símbolos. Mas eles também ajudam a definir o significado ao destacar onde deve ser dada a ênfase. Sem eles, uma trilha sonora fica parecida com um romance de James Joyce: páginas e páginas de prosa sem pontuação. A partir do final da década de 1880, Erik Satie abriu mão dos compassos em composições como a hipnótica Gnossiennes, para piano, em que delicadas melodias modais tocadas com a mão direita parecem flutuar ao sabor dos arpeggios contínuos tocados pela mão esquerda. Na música O Abismo dos Pássaros, de Messiaen, o tempo se transforma em uma preocupação teológica. Ele buscava formas de escapar da linearidade do tempo humano para transmitir o eterno. Gostava de palíndromos rítmicos que subvertiam o tradicional fluxo unidirecional de uma frase. Ritmos lentos e longos silêncios atuam no sentido de dissolver a percepção do ouvinte de algum ritmo discernível ou padrão, e transcrições de cantos de pássaros substituem uma música perfeitamente libertada do tempo consecutivo. O Abismo dos Pássaros, movimento solo para clarineta que integra a obra Quarteto para o Fim do Tempo, emerge do silêncio tão discretamente que parece não ter começo. Breves trechos do canto de aves cortam a calmaria imóvel, apontando para o desconhecido na natureza. Em sua pesquisa envolvendo expressões não-lineares do tempo musical, Messiaen também se inspirou em tradições indianas. O mesmo fez Philip Glass. Em sua obra Einstein na Praia, o ritmo volta ao primeiro plano, e a mecânica da marcação do tempo fica exposta. Mas, com a ajuda de técnicas indianas de construção do tempo — por meio do acréscimo de células rítmicas, repetidas com pequenas omissões e acréscimos — a música resultante não forma mais uma linha narrativa. Em vez disso, obras como Knee Play 1, da ópera Einstein na Praia, se desenrolam como uma mandala que transfixa o ouvinte. As mudanças no design não ficam nem um pouco escondidas: aqui, os cantores entoam os números das batidas. Mas a música parece perfeitamente estática. Em Falling, de Meredith Monk, as vozes e instrumentos traçam a mesma linha sinuosa, lubrificada com glissandos. Mas, depois de algumas repetições em uníssono, a orquestra se divide, com as vozes individuais ficando cada vez mais para trás, como em uma videoconferência problemática. Com o tempo, as linhas circulares se sobrepõem como múltiplas sirenes de ambulância se misturando nas ruas paralisadas pelo trânsito pesado. Evocam uma única história reiterada de acordo com uma multiplicidade de perspectivas. Em Falling, as vozes individuais acabam se perdendo no silêncio, uma a uma, até uma única voz traçar a versão final, de ritmo sutilmente transformado. O silêncio final parece menos um fim e mais a gestação de um novo ciclo. Em Existência, de Anna Thorvaldsdottir, os zumbidos são uma expressão extrema da música que se recusa a ser subdividida ou medida. Alguns compositores modernos criaram épicos com zumbidos que duram toda a noite, consistindo em nada além de um acorde sustentado que a tudo envolve. Para a compositora islandesa Anna Thorvaldsdottir, eles se tornaram o alicerce geológico de ecologias sonoras que trazem poderosa carga emocional, em algum ponto entre o terror e o assombro. Obras como Existência podem também conter camadas de temporalidade discernível, mas o rugido subjacente dos instrumentos graves — na verdade, um complexo oceano sonoro, e não um zumbido estático — parece resistir aos esforços humanos que buscam impor-lhe ordem. Às vezes a atividade na superfície é suficientemente sedutora para afastar a atenção do zumbido, mas ele está sempre lá, mudando e rugindo com a impaciência humana. Quando Jacob Cooper compôs Stabat Mater Dolorosa em câmera lenta para Stabat Mater, de Pergolesi, ele se inspirou nos estudos indicando que o tempo parece se estender nos últimos momentos antes da morte, como uma queda quadro a quadro no abismo. Mas essa obra exaustiva e pungente parece capturar agora o luto específico da covid-19, que nos priva até mesmo dos ritos do pesar. Ao longo de 28 minutos, Cooper parte dos compassos iniciais de um lindo lamento do século 18, repleto de dolorosas suspensões harmônicas, e os reproduz em velocidade lentíssima, ao ponto de o ritmo se tornar indetectável. As suspensões eram um dos principais recursos expressivos da era barroca, criadas quando uma das duas vozes dá um passo, criando uma dissonância temporária que é resolvida quando a outra voz segue o movimento, restaurando a consonância. Na velocidade normal, isso cria uma deliciosa tensão latejante, mais provocação do que desconforto. Mas, ao ritmo glacial de Cooper, cada dissonância perdura tanto tempo que parece esgotar o oxigênio do ambiente. O movimento harmônico tradicional depende da memória humana, do fato de sabermos onde a música começou e para onde quer voltar. Mas, estendida dessa forma, o ouvinte perde de vista essas origens e, com isso, qualquer esperança de resolução. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL