BILLINGS, Montana — Em um salão repleto de cubículos, funcionários com fones de ouvido falam com pessoas que discaram um número 1-800. Eles têm um script na tela do computador.
“Você ou algum ente querido foi abusado sexualmente por Sean ‘Love’ Combs, conhecido como Diddy, Puff Daddy e P. Diddy?”
“Se o abuso ocorreu em uma festa, por favor, diga o nome da festa. Qual era o tipo da festa?”
A empregadora desses funcionários, a Reciprocity Industries, é uma empresa de serviços jurídicos localizada em um prédio baixo em Billings, Montana, a mais de 2 mil quilômetros da prisão onde Combs aguarda julgamento por acusações federais de extorsão e tráfico sexual, em Nova York.

Por anos, a empresa ajudou em processos movidos por vítimas de desastres naturais, herbicidas ou clérigos abusivos.
Agora a empresa está no centro da coleta de acusações de abuso sexual contra Combs.
Algumas queixas são recebidas por telefone, outras chegam on-line, em resposta a anúncios disparados no Facebook e no Instagram. (Uma coletiva de imprensa cujo pano de fundo destacava os números da linha direta foi manchete em outubro).
De acordo com a empresa, ela recebeu cerca de 26 mil contatos – e considerou centenas de reclamações dignas de análise. O principal advogado à frente desses casos, Tony Buzbee, já entrou com cerca de 40 processos contra Combs. Ele diz que mais estão por vir.
Em seus processos judiciais, as pessoas que acusam Combs descrevem abusos terríveis. Quinze pessoas afirmam que ele as estuprou. Três dizem que eram menores de idade na época. Os relatos são parecidos: um drinque em alguma festa, uma tontura incomum e uma agressão sexual. Todas as acusações foram apresentadas anonimamente.
“A denunciante sofreu um impacto significativo em sua vida pessoal”, disseram os advogados de um processo que acusou Combs de agredir uma mulher em um hotel no ano de 2014.

Os casos contra Combs, que nega ter agredido sexualmente qualquer pessoa, correspondem ao que é chamado de mass tort [algo como “delito em massa”, em tradução direta], no qual muitas pessoas, geralmente atraídas pela publicidade, entram com ações contra um mesmo réu.
Essa área crescente do direito há muito tempo divide opiniões.
Os advogados dos denunciantes dizem que esse tipo de caso promove justiça para quem sofreu nas mãos de pessoas ou instituições poderosas, como ex-escoteiros que foram vítimas de abuso sexual. Mas os críticos dizem que os delitos em massa – e a publicidade que muitas vezes os envolve – podem gerar acusações levianas e que o grande volume de casos pode sobrecarregar tanto o sistema judicial quanto as equipes de defesa.
Levará meses, talvez anos, até que acordos, indeferimentos ou vereditos decidam se Combs é um predador sexual. Mas seus advogados já estão contestando as maneiras pelas quais muitos dos casos foram coletados.
“Temos visto um volume muito alto de casos muito, muito duvidosos”, disse Mark Cuccaro, um dos advogados de Combs, a um juiz durante uma audiência em janeiro.
Combs se declarou inocente das acusações criminais. Seus advogados dizem que a enxurrada de processos não é evidência de culpa, mas sim prova de que algumas pessoas sempre tentam se aproveitar de acordos financeiros com celebridades ricas.
Um caso foi retirado no mês passado depois que a denunciante, que disse ter sido estuprada por Combs e pelo rapper Jay-Z quando tinha 13 anos, reconheceu ter cometido equívocos em seu relato durante uma entrevista à NBC News. Suas acusações precipitaram uma batalha jurídica envolvendo investigadores particulares e tribunais em vários estados.
Em outro caso contra Combs, aspectos do processo de um homem anônimo que acusava Combs de estupro – incluindo o ano – foram alterados após inconsistências surgirem em sua entrevista para a CNN.
Buzbee disse que essas questões não devem afetar os outros casos. “Eu sempre digo que cada caso vive ou morre por si mesmo”, disse ele em entrevista.
O aumento dos delitos em massa relacionados a abuso sexual se deve pelo menos em parte a leis estabelecidas na era #MeToo que estenderam novas oportunidades para denunciantes que não entraram com ações durante o prazo normal de prescrição.
A Reciprocity Industries, porém, não entrou no caso Combs porque foi procurada por pessoas que disseram ter sofrido abuso, de acordo com Andrew Van Arsdale, advogado responsável pela empresa. Segundo ele, a empresa entrou nos casos quando ele notou que um processo explosivo, aberto por uma ex-namorada do magnata da música, havia sido fechado com um acordo no dia seguinte à abertura.
“Predadores não fazem essas coisas com uma pessoa só”, disse Van Arsdale em entrevista. “Eles fazem com muitas, muitas pessoas”.
Poucos dias depois, disse ele, sua empresa fez o primeiro anúncio nas redes sociais perguntando às pessoas sobre suas interações com Combs.

A ascensão dos delitos em massa
O cenário jurídico mudou drasticamente em 1977, quando a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que a proibição de propaganda por parte de advogados violava a Primeira Emenda. Pouco depois, rostos e depoimentos de advogados estavam aparecendo em jornais e na televisão.
Regras elaboradas por tribunais e associações de advogados de maneira geral proíbem que advogados contatem, digamos, pessoas feridas em um acidente de carro para perguntar se podem representá-las. Mas é permitido anunciar serviços advocatícios em um fórum público e, em alguns casos, adaptar a mensagem a um grupo específico de potenciais denunciantes. As regras proíbem anúncios falsos ou enganosos.
Defensores de uma reforma nos processos por delito em massa, geralmente advogados que representam empresas que enfrentam litígios, pedem mais regulamentações sobre o conteúdo de anúncios e o papel de investidores terceirizados que ajudam a financiar algumas acusações com grande número de denunciantes.
Os gastos dos casos de delito em massa com publicidade televisiva têm sido em média de cerca de US$ 190 milhões por ano na última década, de acordo com a X Ante, empresa de análise de dados. Mas as redes sociais se tornaram a nova fronteira.
Ao contrário das ações coletivas, nas quais um pequeno número de denunciantes representa um grupo maior de pessoas, geralmente com queixas quase idênticas, os delitos em massa são movidos como muitos processos individuais que normalmente apresentam denúncias semelhantes, mas factualmente distintas, contra o mesmo réu.
A Reciprocity Industries, que Van Arsdale opera com um amigo do ensino médio, hoje engenheiro de software, na verdade não move ações de delito em massa. Ela os auxilia coletando e avaliando queixas e as encaminhando aos escritórios de advocacia do cliente ou ao seu próprio escritório de advocacia, que é uma outra empresa.
Van Arsdale está no ramo da publicidade jurídica desde 2006 e diz que dedicou toda a carreira a ajudar pessoas a ter acesso ao sistema de justiça. Ele decidiu se tornar advogado e passou na ordem em 2018. Pouco depois, foi chamado a participar de seu primeiro caso de abuso sexual, o delito em massa no qual a organização dos escoteiros dos Estados Unidos foi acusada de não proteger crianças.
Van Arsdale e seus colegas fizeram comerciais de televisão em busca de possíveis denunciantes. “Foram necessárias três semanas de anúncios para conseguir o primeiro caso”, disse ele. Conforme as ligações e os casos chegavam, Van Arsdale contratou mais funcionários. Hoje, a Reciprocity emprega cerca de 70 pessoas para atender os telefones 24 horas por dia, 7 dias por semana, e mais 30 outras para se aprofundar nos casos em potencial.
No caso Combs, três clientes em potencial entraram em contato após o primeiro anúncio. “Não foi tão grande quanto pensávamos que seria”, disse ele.
Mas então Combs foi indiciado, e o escritório de advocacia de Van Arsdale fez outra rodada de anúncios nas redes sociais.
“O mundo está acompanhando os desdobramentos do caso P. Diddy”, dizia um dos anúncios, ao lado de uma imagem gerada por inteligência artificial de Combs na prisão. “Se você foi silenciado ou silenciada, agora é hora de encontrar sua voz”.
Os contatos começaram a surgir muito mais rápido.
Cerca de uma semana depois, Van Arsdale disse que Buzbee entrou em contato. Anos antes, disse ele, a Reciprocity havia ajudado Buzbee com publicidade em outro caso de delito em massa.
“Começamos a falar sobre Diddy”, Van Arsdale relembrou de sua conversa em setembro. “E eu disse, ‘Bem, temos alguns casos – acho que é para valer’. Ele disse, ‘Vamos nessa, eu adoraria trabalhar com esses casos’”.
Colegas descrevem Buzbee como um litigante implacável que, como empresário, só aceita pegar os casos em que acredita. “Tony pode dizer ‘não’ sempre que quiser”, disse Chad Pinkerton, que já trabalhou na empresa de Buzbee.
Seis dias depois de Buzbee e Van Arsdale concordarem em trabalhar juntos nos casos Combs, eles fizeram uma coletiva de imprensa na qual Buzbee anunciou que tinham 120 clientes que pretendiam processar o magnata da música, falando em frente a um painel com o número 1-800 da Reciprocity. “O maior segredo da indústria do entretenimento – que, na verdade, não era segredo nenhum – finalmente foi revelado ao mundo”, disse Buzbee aos presentes.

Em 24 horas, a linha direta recebeu cerca de 12 mil chamadas. “Derrubou nossos sistemas”, disse Van Arsdale.
Advogados de Combs chamaram a coletiva de imprensa de “golpe publicitário” e Buzbee de “advogado 1-800”.
“Sean Combs nunca abusou sexualmente de ninguém, nunca traficou ninguém – homem ou mulher, adulto ou menor de idade”, disseram eles em comunicado. “Nem processos multiplicados, nem acusações sensacionalistas, nem farsas midiáticas: nada vai mudar essa realidade”.
Como costuma acontecer com casos de delitos em massa, os advogados que lidam com os processos de Combs podem ficar com uma parte de qualquer quantia que venha a ser estabelecida em veredito ou acordo, normalmente 40%, disse Van Arsdale. A Reciprocity Industries cobra taxas dos escritórios de advocacia que a contratam e usa essa renda para expandir suas operações.
Os mais de 50 processos acusando Combs de abuso sexual vão além daqueles examinados e arquivados por Buzbee. Mais de uma dúzia de outros advogados representam clientes que dizem ter sido vítimas de Combs, e a maioria desses denunciantes entrou com processos por conta própria.
“Para eles, ouvir que não foram os únicos reafirma a própria história”, disse Michelle Caiola, advogada que representa dois desses denunciantes.
No mês passado, Buzbee entrou com mais sete processos de denunciantes anônimos que acusaram Combs de abuso sexual ou violência. Um homem disse que foi estuprado em um quarto de hotel quando tinha 14 anos de idade.
Van Arsdale disse que os anúncios em torno do caso Combs, depois de cumprirem seu papel, foram retirados do ar, mas a linha direta ainda recebe ligações.
Mais recentemente, o escritório de advocacia fez uma campanha publicitária direcionada a pessoas que se sentem prejudicadas por três irmãos que se declararam inocentes de acusações de tráfico sexual em Nova York.
“Se você ou um ente querido em algum momento sofreu com comportamento inapropriado por parte de Oren, Tal ou Alon Alexander”, dizia um anúncio no Instagram, “você pode ter direito a uma compensação significativa”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU