De repente, estamos em 1987. O mundo é caos. Em El Salvador, mísseis norte-americanos cortam os céus. Matam. Aniquilam. A terra treme, sacode à vontade ianque. Ali, um Bono, então atendendo pelo nome de Bono Vox (algo como “boa voz”, em latim), presencia o terror da guerra. Sente raiva, sente compaixão, sente amor e ódio. Num mundo maniqueísta do fim da década de 1980, do bom e do ruim, do bem e do mal, ele está irritado. Quer amor, sente ódio, que a paz e testemunha a guerra. Ressurge, com seu U2, com o poderoso The Joshua Tree, disco nascido de um mundo caótico, incompreensível, violento e desapaixonado.

O ano de 1987 não é tão diferente de 2017. É o que prova o U2 na turnê que revisita, na íntegra, o álbum mais importante da história da banda irlandesa - e isso não significa que seja, necessariamente, o melhor da discografia da banda. É, definidamente, o disco que colocou o U2 no patamar dos gigantes. Canções feitas para abraçar e ecoar em estádios lotados, tal qual o Morumbi, na noite desta quinta-feira, 19, quando 72 mil pessoas, aproximadamente, se reuniram para celebrar um passado sangrento, dolorido e, infelizmente, não tão distante do presente.
Ainda vive-se a guerra. Ainda respira-se o desamor. Ainda suspira-se por esperança, mesmo em um canto de desalento. O que The Joshua Tree se propôs há 30 anos e o repete agora é criar uma corrente de amor, a fim de amarrar o ódio, trancafiá-lo em uma masmorra e lá deixá-lo, a sofrer, até o fim dos dias. É um canto de esperança em meio à escuridão, por mais difícil que pareça.
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O U2 propõe uma jornada bem mais longa do que o disco de 1987 apresenta. Celebram a vida, a própria existência, em uma performance em três atos. O antes, o The Joshua Tree e o depois. São 41 anos de existência, afinal. Diante de um telão de 1,6 mil metros quadrados, Bono, The Edge, Adam Clayton e Larry Mullen Jr. fazem a função de máquina do tempo, como a DeLorean do filme De Volta Para o Futuro, pingando de cena em cena no passado, na tentativa de mudar o futuro - e com o cuidado de não estragar o presente nem arruinar o futuro.
Partem de Sunday Bloody Sunday, o sangrando single de sucesso, às 21h18, depois de uma apresentação eficiente de Noel Gallagher e sua banda High Flying Birds, mesmo que o público só tenha empolgado durante as músicas do ex-grupo dele, o Oasis. Com New Year's Day, Bad e Pride (In The Name of Love), o U2 encerra a sua regressão ao período pré-The Joshua Tree.
A banda aproveita para interagir, inclui uma versão de Heroes, de David Bowie, a cantar os heróis. Ao microfone, em português, Bono celebra artistas brasileiros, como Elis Regina, Renato Russo e Cazuza. Escolado na arte das grandes performances, o vocalista usa seus artifícios, fala português como um bom aluno da escola Paul McCartney de grandes shows. É simpático, dança e pula no palco. Rege a plateia, como se fossem seus. Hipnótico, ele os tinha nas mãos. Discursa sobre direitos civis, sobre ativismo, sobre as mulheres e por um mundo melhor.
jornada se aprofunda com a chegada das 11 canções do álbum de 30 anos. Há para surgir banda capaz de apresentar um trio de canções iniciais tão potentequando aquele que abre The Joshua Tree. Com Where The Streets Has No Name, I Still Haven't Found What I'm Looking For e With or Without You, o U2 mostra seu poder de fogo.
Aos poucos, The Joshua Tree se adensa, escurece, torna-se mais melancólico. A força das luzes esmorece. A única iluminação vem dos fundos, do telão.

É uma experiência curiosa, mesmo, a execução de um disco, na íntegra, ao vivo. Como os pequenos homenzinhos imaginários que tocam as canções quando a agulha da vitrola toca o disco de vinil, ganhassem tamanho real. O U2 se esforça para replicar a mesma experiência de deixar o disco girar e, no sofá, deixar a imaginação tomar conta das imagens. Mais didáticos, contudo, eles jogam imagens no telão para facilidade a viagem. Arranjos - e principalmente a voz de Bono - se mantém fiéis aos originais.
E talvez o lado B de The Joshua Tree seja sombrio demais para o público presente no estádio. Mais reflexivas, as pessoas mais observavam do que cantavam em Exit e Mothers of Disappeared, as duas últimas de The Joshua Tree, expunham a escuridão de ontem e hoje. Com elas, a banda encerra a jornada pelo disco clássico e deixa o palco.
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Ao voltar, o telão exibe cores. Chega a fase mais pop e ensolarada do U2, com a euforia em excesso de Beautiful Day, Elevation e Vertigo. São a face pulsante da banda e também celebradas, a ponto de quererem roubar o protagonismo das canções estrelas da noite.
A The Joshua Tree Tour beira a nostalgia, mas não como algo ruim. Soa, sim, como um alerta, tal qual a frase estampada na camiseta de Mullen Jr.: “censura nunca mais”. Com esse olhar do presente, ao longo de pouco mais de duas horas, o U2 deixa seu recado bem claro. O mundo não pode, de forma alguma, andar para trás.